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Planejar não é crime (em regra, talvez, depende, é complicado…)

Planejamento, execução e os limites da punição no Direito Penal brasileiro

Muito se tem discutido, à luz de inquéritos policiais de alta visibilidade, sobre o fato de o planejamento ou a preparação para a prática de crimes configuraria, também, crime. Nosso foco não vai ser o inquérito policial que investiga as condutas que culminaram nos atos praticados em 08 de janeiro do ano passado em Brasília. Ainda assim, faremos algumas breves ponderações ao final do texto que podem ajudar a esclarecer algumas das complexidades e dúvidas que têm surgido nesse contexto[1].

Para entender esse debate sobre “pensar/preparar” ser ou não crime, precisamos ter clareza sobre uma parte do Direito Penal, na Teoria do Crime, especificamente o iter criminis. Essa expressão em latim não deve ser misteriosa ou intimidar; iter criminis significa essencialmente o “caminho/percurso do crime”. São essencialmente os passos que vão desde o surgimento da ideia de praticar o ato, até a sua efetiva consumação. Tal intervalo pode ser longo (para os casos que são refletidos e planejados extensamente) ou muito breve (como a passagem repentina de uma discussão de trânsito para uma agressão física).

Esse tema não é invenção recente ou algo muito obscuro e de pouca aplicabilidade. Ao contrário, faz parte do currículo de todas as faculdades de Direito e, em algum momento, é trabalhado nas aulas de Direito Penal. É também encontrado em todo o manual sobre a matéria. Normalmente, o percurso do crime é dividido em quatro etapas.

Cogitação: momento exclusivamente interno, pensamento do agente. É a simples ideia ou reflexão sobre uma conduta criminosa, forma de praticar etc. É muito difícil “fiscalizar”, controlar ou até reprovar o mero pensamento (não externalizado) de alguém, por mais criticável que seja. Por isso, a tentativa de criminalizar o ato de pensar abre profundas dificuldades práticas e filosóficas. Para quem tiver interesse, é muito comum ilustrar esse debate com um filme de 2002, chamado “Minority Report: a nova lei”[2]. A proposta do filme é exatamente discutir como seria o cenário em que se têm ferramentas tecnológicas para fiscalizar e punir crimes quando a pessoa está simplesmente pensando em seu cometimento ou, em alguns casos, até antes mesmo de se conscientemente pensar no crime.

Atos preparatórios: são os atos de planejamento e antecipação da prática criminosa. Exemplos: campana para conhecer a rotina da vítima, compra de instrumentos para auxiliar no crime, estudo sobre o melhor lugar para garantir impunidade, reuniões do grupo para planejamento. Essa preparação pode ser bastante minuciosa, a depender dos casos, como pode ser praticamente inexiste, em crimes praticados de supetão ou muito circunstanciais. Mantendo os exemplos cinematográficos, a série espanhola “A Casa de Papel”[3] tem diversas cenas que se passam nesses momentos de planejamento, estudos de rotina, planos de contingência etc.

Execução: quando a conduta é externalizada diretamente para a realização dos elementos nucleares do tipo penal (conforme descrito na lei).

Consumação: quando nas circunstâncias de fato estão reunidos todos os elementos do tipo penal.

Os três últimos elementos podem parecer simples à primeira vista, mas os desdobramentos práticos não o são. Delimitar a fronteira entre a preparação e a execução define também quando uma conduta passa a ser punível criminalmente. Em regra, os atos preparatórios não são crimes e só podem ser punidos quando chegam, pelo menos, à tentativa (leia-se, execução). O art. 31 do Código Penal define exatamente tal ideia[4].

Isso significa que se duas pessoas pretendem invadir uma casa para praticar furto e com elas são encontrados documentos com todo o planejamento do ato, ainda assim não há crime. Mesmo que haja gravações realizadas em campana para conhecer a rotina da vítima; que haja planos escritos sobre data e hora para prática do crime; que haja mensagens em celular com os ajustes entre as pessoas. Com tudo isso, se não chegar a ser iniciado o ato de tentar entrar na casa, não haverá crime.

Mesmo essa separação comporta exceções. Se uma conduta, que serve de preparação para um crime, for prevista, ela mesma, como um crime, então a “preparação” também é crime. Vamos trabalhar um exemplo. Se uma pessoa planeja matar outra e, como forma de preparação, compra uma faca e guarda em casa, essa conduta (ter uma faca em casa) não é crime, logo, a preparação do homicídio, nesse caso, não é crime. Agora, se o sujeito adquire uma arma de fogo com numeração raspada e a guarda em casa, essa preparação (ter arma com numeração raspada) é crime[5]. Por isso, nesse último caso, preparar também é punível, porque é previsto como crime específico. Cuidado: mesmo assim, a punição seria não por “preparação de homicídio”, mas pela posse de arma com numeração raspada.

Então, podemos perceber que faz uma diferença enorme saber quando um ato deixa de ser meramente preparatório e passa a ser um ato de execução; é a diferença entre haver ou não o crime principal. Não existe dúvida de que o ato preparatório não configura, em regra, delito punível. O mais complicado é saber quando uma conduta deixa de ser ato preparatório e passa a ser ato de execução. Os exemplos trabalhados são didáticos, porque são simples. No entanto, a realidade é complexa; é muitas vezes difícil fazer essa separação na prática.

As discussões científicas dos últimos 150 anos (sim, é isso mesmo) tentam oferecer mais clareza para essa distinção, mas as formas mais atuais desse debate, ainda que tenham avançado, não resolvem tudo. E para complicar mais, o nosso Código Penal adota um modelo mais antigo dessa construção. A nossa legislação (art. 14, II, do CP) considera a passagem da preparação para a tentativa (início da execução) quando há a prática de “ação do tipo” (aquela conduta descrita legalmente como crime). No crime de homicídio, a ação de matar só inicia quando o agente pressiona o gatilho da arma, quando desfere os golpes com o bastão ou faca etc. Qualquer coisa antes disso, é preparação.

A questão é mais complexa tecnicamente[6]. Porém, o(a) leitor(a) provavelmente quer saber como fica a questão de um crime contra as instituições democráticas (arts. 359-L e 359-M do CP). Conforme nossa legislação, essas ações demandam o emprego de violência ou grave ameaça, para abolição do Estado de Direito ou deposição de governo legitimamente constituído. Logo, a passagem da preparação para execução pressupõe, ao menos, alguma conduta com violência ou ameaça no sentido de atingir a finalidade do crime.

Papeis, conversas, planos, minutas, rascunhos de atos oficiais, sugestões etc., quando isolados, não configuram essa passagem, logo, não estariam no campo do punível. Porém, em casos complexos, essas condutas raramente estão isoladas de um contexto maior. Temos uma investigação grande em vias de finalização e na pendência de análises do Ministério Público para decidir se e como formulará uma acusação. Nesse sentido, está tudo em aberto e nada se pode afirmar com certeza, mesmo em uma análise estritamente legal.

Mesmo se for considerado que é tudo ato preparatório, pode ser que alguma dessas condutas prévias configure um crime autônomo e, por isso, punível. Também é possível que se amarrem fatos como a tentativa de explodir caminhão com combustível de avião no aeroporto de Brasília em dezembro de 2022 ou a notória situação de 8 de janeiro de 2023 na Praça dos Três Poderes. Se esses elementos forem considerados como partes de um mesmo todo, haveria o cruzamento da linha para a execução (e configuração) dos crimes.

Também é possível (com base nas conclusões do relatório da Polícia Federal) que se tente enquadrar a associação dos envolvidos como uma organização criminosa (na forma da Lei nº 12.850/2013). Se assim for feito, a discussão sobre preparação ou execução é, em parte, irrelevante. Isso porque a lei considera que há crime (promover, constituir, financiar ou integrar organização criminosa[7]), mesmo que os outros crimes que estavam sendo planejados não venham a acontecer.

Em resumo, planejar não é crime (em regra). A separação entre o final da preparação e o início da execução de um crime não é uma questão sempre simples de resolver. Os fatos investigados pela Polícia Federal esbarram nessa discussão do iter criminis, mas vão muito além dela; a construção de uma acusação criminal pelo Ministério Público pode precisar enfrentar esse debate, como pode contorná-lo completamente. A forma que isso assumirá é, neste momento, imprevisível.


Referências

[1] O relatório nº 4546344/2024 da Polícia Federal (registro 2023.0050897-CGCINT/DIP/PF) está disponível em diversos canais de comunicação. Trata-se de uma investigação complexa e extensa (884 páginas). Um comentário detido é impossível para o escopo desta coluna.

[2] https://www.imdb.com/title/tt0181689/

[3] https://www.imdb.com/title/tt6468322/

[4] Art. 31: O ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado.

[5] Art. 16, § 1º, IV, da Lei nº 10.826/2003.

[6] Esse modelo de nosso Código não parece incluir o dolo como elemento diferenciador de atos que são objetivamente iguais, mas finalisticamente distintos. Sem olhar o dolo, é muitas vezes impossível diferenciar uma lesão corporal consumada ou um homicídio tentado. E, assim, profissionais do Direito suprindo ela lacuna com elementos conjunturais do fato de modo meio intuitivo. Outros autores chegam a propor uma adaptação do modelo alemão (teoria objetivo-subjetiva), para considerar a tentativa quando o autor se coloca imediatamente à realização do tipo penal e assim representa a realidade. Sobre o debate, ver CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: parte geral. 10. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022, p. 397 e segs.

[7] Art. 2º da Lei nº 12.850/2013.

Sobre o autor:

Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estágio doutoral na Universidade de Hamburgo (Alemanha). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Advogado e membro da Comissão de Política sobre Drogas da OAB/PR.

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