Emagrecedores estéticos como uma epidemia medicamentosa

O uso arriscado de análogos de GLP-1: entre a estética e a saúde pública

Nos últimos anos a indústria farmacêutica encontrou uma verdadeira mina de ouro, que é o mercado de pessoas que querem emagrecer sem muito esforço, estando dispostas inclusive a desembolsar altos valores para obter resultados rápidos e satisfatórios a curto prazo, com medicamentos que não foram projetados inicialmente para redução de peso, como é o caso dos análogos de GLP-1[1], aqueles considerados “o queridinho das estrelas de Hollywood[2]”.

A busca por um corpo ideal e o prolongamento de uma imagem pessoal jovem por mais tempo tem sido um dos impulsionadores na venda escalonada desses fármacos, e tem atraído adeptos no mundo todo que buscam emagrecer sem muito esforço.

A grande questão é que, ao contrário do que está descrito em bula, esses fármacos não possuem estudos e indicações para uso seguro na redução de peso em pessoas que não são obesas, tornando o seu uso arriscado e perigoso, ainda que prescrito por profissional médico.

Isso porque os receptores GLP-1 estão presentes não somente nas células do pâncreas, mas na superfície de outras células como naquelas do cérebro, coração, estômago, células pulmonares, do trato gastrointestinal, para além daquelas ainda não identificadas.

Assim, para cada local do nosso corpo em que os receptores GLP-1 são acionados, as células as quais estão ligados podem provocar um efeito, o que muitas vezes ainda não foi identificado, como é o caso da resposta observada dos receptores GLP-1 no trato gastrointestinal que têm um mecanismo de ação conhecido de retardamento do esvaziamento gástrico.

Esse feito não foi identificado nos estudos clínicos e de desenvolvimento desses fármacos aparecendo somente agora após sua grande exposição, trazendo um alerta para o cuidado com o seu uso quando da realização de procedimentos com anestesia ou sedação profunda, pois devido ao efeito de retardar o esvaziamento gástrico esses medicamentos podem aumentar o risco de aspiração e pneumonia, levando a complicações anestésicas e em alguns casos à morte.

O risco de complicação é tão relevante que a Agência Reguladora de Medicamentos no Brasil, ANVISA emitiu o alerta nº 32024/2024[3], informando sobre o uso de agonistas de receptor GLP-1 (semaglutida, liraglutida, liraglutida + insulina degludeca, lixisenatida, tirzepatida e dulaglutida) associado à anestesia ou sedação profunda, pode aumentar o risco de aspiração e pneumonia por aspiração.

A Anvisa também solicitou a inclusão em bula do referido risco aos respectivos detentores de registro, além de recomendar aos profissionais de saúde que devem estar atentos e questionar os pacientes que serão submetidos a procedimentos sob anestesia ou sedação profunda acerca do uso de agonistas de receptores GLP-1. Além disso, orienta que os profissionais deverão adotar medidas eficazes para garantir a ausência de conteúdo gástrico residual antes da realização de procedimentos anestésicos.

A grande preocupação, para além daqueles pacientes que estão devidamente acompanhados por profissionais responsáveis, é com aqueles usuários que muitas vezes não possuem acompanhamento médico, administrando por conta própria o produto, sem saber os riscos os quais estão se expondo para obter “alguns quilinhos à menos” em pouco tempo.

Essas pessoas muitas vezes adquirem produtos de forma ilegal, sem garantia de qualidade, ou em condições de armazenamento que não atendem às boas práticas farmacêuticas, como estabelecimentos sem as devidas licenças. Sem sequer se preocupar com o que está descrito em bula esses usuários sabem interpretar ou mensurar o grau de risco a que se propõem.

Fato é que diariamente somos bombardeados por informações “positivas” e promissoras sobre esses fármacos, quando na verdade o seu lado oculto vem sendo apresentado em uma velocidade muito menor.

Todos os fármacos têm potencial para causar danos, e quanto mais tempo de exposição no mercado mais se conhece o perfil de segurança, enquanto que, quanto mais “jovem” é um produto farmacêutico, menos se sabe sobre como será seu comportamento no mundo real que ocorre somente após a larga exposição. Vale ressaltar que no mundo real os usuários dos fármacos são pessoas com perfis totalmente diversos daqueles participantes de pesquisa, que se utilizam de apenas um fármaco para realização de teste. Além disso, esses participantes não possuem outras patologias e, mesmo quando fazem uso do fármaco o fazem somente enquanto perdurar esses estudos clínicos, um período que dificilmente supera 48 meses, o que diferente do que acontece na via real, em que pessoas estão fazendo uso prolongado desses produtos e de uma forma que nunca foram testados.

Em que pese a indústria farmacêutica Novo Nordisk® tenha se pronunciado quanto à não recomendação do uso dos inibidores de GLP-1 fora do que está descrito em bula, chegando a ressaltar que não endossa ou apoia a promoção de informações de caráter off-label, a farmacêutica é globalmente conhecida por suas estratégias de marketing digital e mídia social, utilizando-se de plataformas on-line para envolver pacientes e profissionais de saúde na prescrição e uso desses seus produtos.

O “efeito Ozempic” é um sucesso global que alavancou a economia da Dinamarca, país em que a farmacêutica está sediada o que ampliaram investimentos em diversas áreas do país, influenciando inclusive suas políticas públicas.

Com o sucesso da “semaglutida”, a Novo Nordisk é considerada a empresa mais valiosa da Europa, chegando a superar a LVMH, conglomerado de luxo dono da grife Louis Vuitton, como maior empresa listada em Bolsas europeias, acumulando em 2023 US$ 425 bilhões na Bolsa.

Segundo a Forbes, o preço das ações da Novo quase triplicou nos últimos três anos, o que é muito preocupante para quem precisa de novos fármacos, pois o sucesso certo dos agonistas GLP-1 não dá espaço para apostas em fármacos em que não se sabe se trarão o retorno financeiro esperado para cobrir os custos do desenvolvimento de novos produtos.

Atualmente no Brasil a “semaglutida” ocupa o terceiro lugar como substância com mais pedidos de registro, com pelo menos 7 novos medicamentos[4], conforme dados publicados pela ANVISA e que podem ser encontrados no painel que permite consultar a lista de princípios ativos de medicamentos com pedidos de registro em análise pela Agência. Isso serve de alerta para que estudos farmacoepidemiológicos sejam fomentados com urgência para saber o real comportamento desse medicamento na população usuária. Com esses estudos o Estado pode adotar políticas públicas mais assertivas para controlar e combater o uso exagerado e inadequado do produto, uma vez que esse fato torna-se uma questão de saúde pública, pois afinal, para onde vão os usuários desse produto se não para os estabelecimentos de cuidados em saúde?

Enquanto a “semaglutida” para uns é a prática do emagrecimento estético, para pacientes de diabetes tipo 2 a escassez do medicamento nas farmácias provoca uma verdadeira peregrinação para quem realmente precisa.

É dever do poder público e dos profissionais de saúde incentivar o uso consciente dos medicamentos, e, no caso dos agonistas de GLP-1, o combate à venda de produtos falsificados e mal acondicionados, e que acrescentam risco ainda maior e preocupante à população.[5]


Referências

[1] Os chamados agonistas de GLP-1 são fármacos que “copiam” o mesmo comportamento do  GLP-1(glucagon-like-peptide-1), hormônio produzido no intestino que regula a glicemia. O efeito emagrecedor não é o principal efeito, tanto que o uso para emagrecer foi na forma off-label, ou seja, fora do que está descrito em bula. 

[2] Diversos jornais  do mundo todo tem relatado que o medicamento para diabetes Ozempic tem sido usado para o emagrecimento por diversos artistas de Hollywood. Celebridades como Stephen Fry, Oprah Winfrey, Kelly Clarkson e até Elon Musk confessaram o uso de medicamentos para perda de peso.

[3] O dever da vigilância sobre os medicamentos nos países é um compromisso mundial e de interesse de todas as populações uma vez que são igualmente usuárias dos produtos. Isso se deve principalmente depois do caso da Talidomida, medicamento que introduzido o mercado como um fármaco para uso em grávidas no tratamento de enjôos mas que foi retirado do mercado mundial 4 anos após o efeito teratogênico ser descoberto em 1961. Devido ao seu efeito benéfico para o tratamento de hanseníase em 1965 foi redescoberto e no Brasil sua prescrição é restrita e altamente controlada.

[4] AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Anvisa publica painel com lista dos princípios ativos de medicamentos que aguardam registro. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/noticias-anvisa/2024/anvisa-publica-painel-com-lista-dos-principios-ativos-de-medicamentos-que-aguardam-registro.  Acesso em: 15 out. 2024.

[5] A nossa Constituição Federal é garantidora de direitos fundamentais que incluem o direito à saúde em seu Art 5º e a garantia de políticas sociais e econômicas que visem à redução de riscos de doença, devendo fomentar, dentre outros, o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação em matéria de saúde, é o que menciona o Art 196 do mesmo diploma legal.

Sobre o autor:

Dacylene Amorim

Graduada em Farmácia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), graduada em Direito pela Universidade Paulista, pesquisadora em Direito Médico e da Saúde pela USP Ribeirão Preto, pesquisadora pelo Instituto de Direito Sanitário - (Idisa). Autora de artigos e co-autora de livros em matéria de Direito da Saúde, professora responsável pelo Curso de Direito Farmacêutico da Universidade Mackenzie.

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