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A nova lei do feminicídio faz muitas mudanças (mas quase nenhuma delas é sobre feminicídio)

Legislação afeta não só crimes de violência contra a mulher, mas também outros delitos, com aumento de penas e restrições de direitos

A Lei 14.994/2024, sancionada na data de 10/10/2024, traz inúmeras alterações no campo penal para condutas envolvendo violência contra a mulher, em razão da condição de gênero. Certamente, as discussões tenderão para a criação de um tipo penal autônomo para o feminicídio e a (simbólica) pena definida para o crime. Porém, ao final destas breves linhas, gostaria que o(a) leitor(a) tivesse a clareza de que essa lei altera muito mais do que parece – e (spoiler) a maior parte das alterações nem é referente ao feminicídio.

Quando uma pessoa é processada e condenada por um crime, ela recebe muito mais do que a pena definida na sentença do(a) juiz(íza). Não estamos falando apenas das consequências sociais e desdobramentos diversos sobre o preso e sua família; sobre as consequências no corpo, na mente de todas as pessoas que se relacionam com alguém que já tenha passado pelo sistema penal. Queremos ressaltar que há também um número enorme de consequências jurídicas que recaem sobre essas pessoas.

Talvez, neste momento, você esteja pensando na gravidade da conduta do feminicídio; na quantidade enorme de mulheres vitimadas por formas diversas de violência e que, não raro com uma escalada de condutas do agressor, culminam com a perda de (mais) uma vida. Porém, a nova lei quase nada inova sobre isso. Na leitura deste texto, mantenha em mente que o sistema penal não é somente prisão e a Lei 14.994/2024 é muito mais do que feminicídio.

Para não deixar que apenas uma das alterações ganhe os holofotes e acabe ocultando tantas modificações relevantes, gostaríamos de separar três questões relacionadas com essa lei: a criação de um tipo autônomo para o feminicídio (reprise como se fosse atração principal), alterações em outros crimes (inclusive sem relação com a violência contra a mulher) e a redução de direitos de todas as pessoas (homens e mulheres).

Sobre o feminicídio

Boa parte dos comentários sobre a nova lei estará focada nessa criação de tipo autônomo: antes era uma forma qualificada do homicídio; agora é uma figura própria, separada do homicídio. Apesar disso, pouca coisa muda de fato; a maior parte do texto é repetição daquilo que já estava previsto no Código. As novidades estão em alguns detalhes pontuais, por exemplo, algumas circunstâncias que qualificam o homicídio, funcionam como causa de aumento no feminicídio.

Já outras alterações não são tão simples e poderão trazer bastante dificuldades técnicas no campo jurídico[1]. Talvez, a modificação mais comentada seja o agravamento da pena. Antes, era a mesma do homicídio qualificado (12 a 30 anos de reclusão); agora, temos a previsão de privação de liberdade de 20 a 40 anos. A pena máxima é simbólica, porque assume o pódio de maior pena abstrata da nossa legislação penal[2].

Essa pena máxima pega embalo na alteração feita em 2019 no Código Penal (art. 75), que passou a permitir cumprimento de pena privativa de liberdade por até quatro décadas. Então, afirma-se ser simbólica a alteração pois abre a possibilidade de que alguém seja sentenciado a 40 anos de reclusão, mesmo sem incidência de causas de aumento ou somatório por crimes diversos (concurso material).

À exceção da alteração simbólica (e populista) da quantidade de pena, dos detalhes pontuais técnicos e tempo para progressão do condenado primário por feminicídio, não há mais alterações diretas sobre esse crime.

Outros crimes alterados (inclusive sem relação com violência contra a mulher)

A Lei 14.994/2024 altera também a punição prevista para outros crimes na legislação penal. Sem dúvida, a confusão mais relevante ocorreu com o crime de lesões corporais (art. 129 do CP).

A lesão corporal qualificada pela violência doméstica é uma figura que já existe em nossa legislação desde 2004. Com a Lei Maria da Penha (2006), a pena dessa figura foi ampliada – além de produzir outros impactos técnicos. Ao longo de muitos anos, sempre que se falava no crime de violência doméstica, era dessa figura que se tratava.

No entanto, esse delito não tinha como vítima apenas mulheres. Em qualquer lesão corporal no contexto doméstico ou familiar, contra homem ou mulher, o crime era o mesmo. Assim, em 2021, criou-se uma figura autônoma, para separar a hipótese de lesão corporal contra mulher, em razão da condição de sexo feminino (espelhando a figura do feminicídio que já existia). O Poder Legislativo entendeu que esse tipo autônomo merecia uma resposta mais severa, considerando a peculiaridade social da violência contra a mulher.

A divisão ficou então da seguinte forma:

  • Lesão corporal contra mulher em razão de sexo feminino (incluindo violência doméstica ou familiar): figura própria, com pena maior (1 a 4 anos de reclusão);
  • Demais lesões corporais em relação doméstica ou familiar contra homens: figura geral, com pena menor (3 meses a 3 anos de detenção).

Dentro das tendências legislativas dos últimos anos, não parecia contraditória essa separação e respostas diferentes. Porém, com a nova Lei 14.994/2024, as penas das duas figuras foram igualadas novamente: reclusão de 2 a 5 anos. Ou seja, tornou o § 13 do art. 129 do CP, em grande parte, redundante.

Uma lei que parece ter a função declarada de dar resposta mais pesada a crimes praticados contra a mulher, desfaz exatamente a diferenciação criada por lei em 2021. No caso de vítimas homens, essa alteração não é apenas de quantidade; a partir de agora, afasta também a possibilidade de suspensão condicional do processo. Isso é o que apontamos no início do texto: as modificações não são direcionadas apenas para crimes envolvendo vítimas mulheres e em razão da violência de gênero.

Talvez, o motivo dessa equiparação seja a percepção, de que a figura geral da violência doméstica (§ 9º) também incidiria nos casos com vítimas mulheres. Isso porque há muitos processos em curso, que aplicam essa figura nos crimes contra elas praticados. Porém, são processos que envolvem fatos ocorridos antes da entrada em vigor da lei de 2021 e que, por isso, encontram o limite constitucional da irretroatividade da lei. Pelo mesmo motivo, o agravamento da pena pela nova lei também nada fará com relação a esses fatos anteriores.

Outros direitos limitados

Além das alterações em crimes, um número enorme de modificações foi realizada em torno de limitações de direitos. Diversas delas são de constitucionalidade altamente questionável, mas essa análise específica deixaremos para outra oportunidade.

É bastante comum, em situações envolvendo o crime de ameaça (art. 147 do CP), quando aplicável Lei Maria da Penha, que a vítima vá até a Delegacia especializada para noticiar o fato e pleitear a decretação de medidas protetivas de urgência. Também é frequente que ela faça o pedido pelas medidas protetivas, mas não ofereça representação (ou seja, peça que não sejam adotadas outras medidas penais contra o agressor).

Não temos como (e nem podemos) julgar essa escolha. Os motivos passam pela complexidade da relação entre os envolvidos; não é possível jogar todas as situações em uma mesma vala e a análise da vítima é aquela com mais capacidade de considerar todas as peculiaridades. Às vezes, o agressor é responsável por outros integrantes da família, ou é alguém que contribui economicamente com o sustento dos filhos, ou considera o impacto sobre outras pessoas em círculos sociais próximos, ou…, ou…, ou…

São tantos elementos que a realidade apresenta, que não é possível fechar esse grau de escolha para a vítima. Porém, a tendência em crimes envolvendo violência contra a mulher ao longo dos últimos dezoito anos foi diminuir essa possibilidade de escolha: em 2006, com a lesão corporal leve; em 2018, nos crimes contra a dignidade sexual. A principal exceção era o crime de ameaça.

Da forma como as medidas protetivas estão construídas, era possível solicitá-las, mesmo que a ofendida não representasse. Agora, ela não mais tem essa margem de disposição e, se for à Delegacia pleitear a intervenção por meio de medida protetiva de urgência em crime de ameaça, automaticamente o Poder Público estará obrigado à instauração de inquérito e a denunciar, mesmo contra a vontade expressa da própria vítima. Contraditoriamente, essa diminuição da liberdade de escolha da mulher ameaçada pode ter um efeito dissuasor; ela pode acabar não buscando a intervenção via medida protetiva, com receio de que a resposta criminalizante automática só piore a situação.

Outro grupo de alterações está nos chamados efeitos extrapenais da condenação. Não é óbvio, mas uma pessoa condenada sofre outros efeitos jurídicos além da própria pena. Dentre eles, estão os chamados efeitos específicos (previstos no art. 92 do CP) e que não têm incidência automática. Eles dependem de análise e manifestação expressa do juiz, quando da condenação. Dois desses efeitos são perda de cargo, função pública ou mandato eletivo; e incapacidade para o exercício do poder familiar. Este último envolve, dentre outros elementos, a direção da educação dos filhos e o exercício da guarda.

Antes, a perda do poder familiar exigia de que o crime fosse praticado contra filho, tutelado ou curatelado e que esse crime tivesse pena de reclusão. Além disso, a perda do poder familiar dependeria de análise específica pelo juiz, que poderia deixar de aplicar o efeito se essa decretação não fizesse sentido ou criasse prejuízo maior para os filhos. Dentre as alterações da nova lei, se o crime for praticado em razão da condição de mulher, esses efeitos passam a ser automáticos!

O pensamento imediato pode ser: mas feminicídio é muito grave, então, parece proporcional proteger os filhos. No entanto, lembre-se de que a lei não envolve apenas feminicídio. Em diversos pontos, a limitação de direitos é aplicável a “crimes contra a mulher por razões do sexo feminino” e aponta para o art. 121-A, § 1º, do CP[3]. Este dispositivo traz uma definição desse conceito e sua aplicabilidade não é restrita ao feminicídio, tanto que a forma especial da lesão corporal contra mulher (art. 129, § 13, do CP) já fazia esse tipo de referência para complementar sua definição. Para que esses dispositivos limitadores de direitos sejam aplicados, basta que o crime seja praticado (por homem ou mulher) contra mulher no contexto de violência doméstica e familiar ou com menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Para se ter uma noção exemplificativa dessa amplitude, imagine uma discussão de trânsito. Um casal (pai e mãe de filhos) discute com uma motorista idosa (mulher) de outro veículo. Esse casal profere xingamentos e ofensas e, no contexto, fazem-no com menosprezo à condição de mulher e à condição de pessoa idosa. Se a vítima entender por ingressar com uma queixa-crime pelo crime de injúria qualificada (art. 140, § 3º, do CP[4]) e esse casal terminar condenado, ambos perderão o poder familiar (incluindo a guarda) de seus filhos, atuais e futuros[5], automaticamente e sem margem para modulação pelo juiz.

Mais ainda: se forem funcionário públicos, também poderão perder o cargo, a depender de algumas circunstâncias; e se estiverem prestes a assumir função pública em razão de aprovação recente em concurso público, não poderão ser nomeados. Tudo isso por uma briga de trânsito, sem violência física ou ameaça.

A mesma lógica valeria para o crime de ameaça (se a leitura do novo dispositivo abranger também crimes com pena de detenção, em razão da forma como redigido) ou de lesão corporal. Em ambos os casos, a consequência potencial é a mesma. Consegue perceber como a questão vai muito além do feminicídio?

E não acaba aí. Diversos direitos são afetados no campo da execução penal. O simples fato de a condenação ser por crime contra a mulher em razão do sexo feminino altera pontos relevantes do cumprimento da pena. Mais uma vez, não é apenas o feminicídio – incluindo aí a briga de trânsito, a discussão em reuniões de condomínio, conflito em lojas ou restaurantes etc. Também não significa apenas condenados homens; essas limitações são para qualquer pessoa.

Os condenados por quaisquer desses fatos, automaticamente, deixam de ter direito de visita conjugal. É irrelevante se o crime é praticado contra cônjuge/companheiro(a) ou qualquer outra pessoa. Qual a relação entre o direito à sexualidade como elemento integrante da saúde (física e mental) e a proteção da sensação de segurança da vizinha ameaçada na reunião de condomínio? Vai saber… E essa limitação afeta também o companheiro ou companheira desse(a) preso(a) e, assim, a pena passará da pessoa do condenado. Quase um incentivo legal ao adultério ou divórcio.

As pessoas condenadas por qualquer desses fatos (do feminicídio à briga no restaurante) também têm monitoramento eletrônico obrigatório em caso de qualquer benefício que envolva saída do estabelecimento penal. Por exemplo: condenado ou condenada, cumprindo pena em colônia penal (regime semiaberto) e que esteja trabalhando externamente (elemento fundamental para a ressocialização), será submetido obrigatoriamente a esse tipo de fiscalização. Ou seja, reforça-se ainda mais a estigmatização.

Em conclusão

A conclusão que queremos deixar é: cuidado com o canto da sereia. O discurso de uma resposta criminal dura pode ser tentador, mas ele nunca vai exclusivamente para aquilo que parece. A realidade da aplicação das normas penais é bastante complexa e, nos casos envolvendo violência contra a mulher, especialmente nos cenários das relações domésticas e(ou) familiares as dificuldades são ainda maiores. Os casos extremos (com especial destaque àqueles que escalam para a situação de feminicídio) exigem intervenções muito céleres e fiscalização contínua. Porém, como vimos, a nova legislação não lida especificamente com essas situações. Ao contrário, amplia e banaliza a punição e a limitação de direitos para fatos tão diversos, que irá aumentar o caos, a sobrecarga e a falta de estrutura nas agências públicas que precisam aplicar essas regras. E o risco real desse cenário é o aprofundamento da ineficácia e redução da proteção exatamente daquelas pessoas de quem promete cuidar.


[1] Temos uma estranha separação entre ser mãe e ser responsável por criança e adolescente; com a impressão de que a pena seria aumentada, bastando que a vítima seja mãe, ainda que não seja responsável pela pessoa menor de 18 anos. Também o risco de responsabilidade objetiva ou se essas circunstâncias exigem presença de dolo. Por fim, a aparente confusão sobre coautoria, participação e comunicabilidade de circunstâncias de natureza estritamente pessoais.

[2] A pena máxima de 30 anos de reclusão já era prevista nos seguintes crimes: pelo homicídio qualificado (art. 121, § 2º, do CP), latrocínio (art. 157, § 3º, II, do CP) e extorsão mediante sequestro com resultado morte (art. 159, § 3º, do CP)

[3] Texto do art. 121, § 2º-A, do CP que foi transposto para o novo art. 121-A.

[4] Com pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

[5] No caso dos filhos futuros, a capacidade para o exercício do poder familiar pode ser recuperada por um procedimento chamado reabilitação (art. 93 do CP). Isso não é automático e depende de uma série de formalidades.

Sobre o autor:

Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estágio doutoral na Universidade de Hamburgo (Alemanha). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Advogado e membro da Comissão de Política sobre Drogas da OAB/PR.

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