Era 28 de julho, dia da eleição presidencial da Venezuela, e Caracas estava quente e iluminada. Como um sinal da distopia que aprofundava o controle do país, era como se o relógio da cidade pudesse bater 13 horas. Hoje, após dois meses da eleição, a repressão continua a escalar. O regime de Maduro segue com sua propaganda, retratando-se como um herói que luta contra o imperialismo americano. Em desenhos animados, Maduro enfrenta uma caricatura de Elon Musk, posando como o defensor da soberania. Essa campanha de propaganda surreal, apesar de parecer engraçada à primeira vista, destaca como o regime distorce profundamente a realidade para os venezuelanos.
O discurso de Yván Gil, Ministro das Relações Exteriores da Venezuela, na Assembleia Geral da ONU na semana passada, é uma prova clara disso. Como esperado, Gil não apenas declarou que as eleições de julho foram uma legítima expressão da vontade do povo venezuelano, mas também culpou a oposição pela escalada da violência. A retórica de Gil – assim como nos desenhos animados – tenta retratar a Venezuela como uma vítima de interferência estrangeira. A Venezuela ainda busca convencer a comunidade internacional de que não há nada de errado no país, enquanto o regime de Maduro se mantém no poder por meio da repressão e propagação do medo sobre opositores.
Nesse contexto, é importante reconhecer o papel de países como Uruguai e Argentina como lideranças da oposição na América do Sul. Sob a gestão dos presidentes Lacalle Pou e Milei, as tensões na região chegaram a níveis não vistos desde a reunião do Grupo de Lima em 2019, quando líderes regionais tentaram facilitar a transferência de poder de Maduro para o líder da oposição, Juan Guaidó.
Por exemplo, durante uma reunião especial do Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos (OEA), em 31 de julho, o embaixador uruguaio Washington Abdala criticou severamente o processo eleitoral venezuelano. Abdala ridicularizou a ideia de que mais de 8 milhões de venezuelanos teriam fugido de seu país voluntariamente para “turismo” – quando é evidente se tratar de uma gravíssima crise humanitária.
Na Argentina, o presidente Javier Milei condenou consistentemente as ações do regime mesmo antes de se tornar o líder argentino. Por isso, sem qualquer surpresa, apenas dois dias após a eleição, a crise diplomática atingiu seu ápice quando Maduro deu 72 horas para que os diplomatas argentinos deixassem o país, acusando-os de interferir nos assuntos internos da Venezuela. Embora os diplomatas tenham recebido passagem segura, nenhuma garantia foi estendida aos seis requerentes de asilo (que viviam na embaixada desde março de 2024), deixando seu destino em uma situação de incerteza.
A crise se expandiu além de Caracas, quando o Brasil interveio para administrar os assuntos da embaixada argentina na Venezuela. A decisão de transferir a responsabilidade diplomática para o Brasil surgiu por necessidade, diante da escalada das tensões entre os governos.
Para piorar ainda mais a situação, o governo de Maduro revogou, no início do mês de setembro, a custódia do Brasil sobre a embaixada argentina, acusando os venezuelanos em busca de asilo de planejar atividades terroristas. Enquanto o Brasil tenta mediar a situação, o regime de Maduro cercou a embaixada com forças de segurança e até restringiu o acesso a alimentos para os requerentes de asilo. Ainda durante a Assembleia Geral da ONU, na semana passada, em Nova York, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Maurício Vieira, pediu formalmente passagem segura para os seis opositores que buscam asilo na embaixada argentina em Caracas.
Esse impasse diplomático revela até que ponto a repressão interna da Venezuela transbordou para o cenário internacional. Além disso, a opressão dentro do país continua por meio da “Operação Tum Tum”, onde cidadãos são incentivados a denunciar uns aos outros. Maria Oropeza, líder na organização Ladies of Liberty Alliance (LOLA) e da equipe de oposição de María Corina, foi uma das principais vítimas dessa operação. Em 6 de agosto, ela foi retirada de sua casa durante uma transmissão ao vivo e está incomunicável desde então. Nenhuma acusação formal foi feita, e seu paradeiro permanece incerto – embora haja fortes indícios de que ela esteja sendo mantida no El Helicoide, o maior centro de tortura da América Latina, localizado em Caracas.
Por conta de toda essa situação, Edmundo Gonzalez Urrutia, candidato à presidência pela oposição, foi forçado a fugir do país, seguindo os passos de Juan Guaidó em 2019. Com Gonzalo agora exilado, María Corina Machado é uma das últimas líderes proeminentes da oposição que ainda permanecem na Venezuela. Quanto tempo ela conseguirá se manter antes de também ser alvo do regime é incerto, à medida que a repressão aumenta.
Mesmo com toda essa situação em sua própria fronteira, o presidente Lula tem adotado uma postura perigosamente ingênua e complacente, ignorando o fato de que o regime de Maduro rouba sistematicamente eleições e nunca permitirá processos democráticos. Ao tratar a crise como um assunto de negociação, Lula corre o risco de legitimar a tirania de Maduro e de fechar os olhos à agonia venezuelana.
Nesses dois últimos meses, parece que o relógio poderia bater 14, ou talvez 15 horas, antes que o pesadelo venezuelano chegasse ao fim. Enquanto a comunidade internacional observa, a repressão se aprofunda e a necessidade de retaliação aumenta. A luta pela liberdade não é apenas uma questão venezuelana – é uma luta pelos direitos humanos e pelo futuro da democracia na região. O mundo continuará parado enquanto o relógio da Venezuela quase bate 15 horas?
* As opiniões expressas nos artigos publicados são de responsabilidade exclusiva dos autores e não refletem necessariamente a posição ou opinião da Cátedras.
Sobre o autor:
Doutora em Direito e Economia Política pela Universidade de São Paulo e diretora de relações internacionais do LOLA Brasil. Iza também é colaboradora no programa Young Voices.