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Programa de Concessões Rodoviárias 2023-2026 do Estado de Mato Grosso prevê inovações desejáveis para o setor de rodovias

Novo modelo de concessão rodoviária de Mato Grosso combina inovações tecnológicas, sustentabilidade ambiental e equilíbrio financeiro

No último mês, a Secretaria de Estado de Infraestrutura e Logística de Mato Grosso (Sinfra-MT) realizou consulta e audiência pública virtual para coletar sugestões sobre as minutas de edital e contrato de concessão, bem como para o Programa de Exploração da Rodovia (PER) e para os estudos de viabilidade referentes à concessão de seis lotes da Fase I do Programa de Concessões Rodoviárias 2023-2026.

O modelo proposto caminha em prol das melhores práticas de atuação consensual entre concessionária e o Poder Público, além de promover inovações significativas em relação aos modelos regulatórios implementados pela ANTT e ARTESP – o que deve ser festejado. A análise do modelo, se bem executado, permitirá equilibrar o princípio da modicidade tarifária sem perder de vista a sustentabilidade financeira do projeto.

Seguindo o padrão observado no âmbito federal desde a origem do Programa de Concessão de Rodovias Federais (Procofe), a minuta de edital dos seis lotes da Fase I adota como critério de seleção o menor valor de tarifa de pedágio, nos termos do art. 15, inciso I, da Lei nº 8.987/ 1995.

No entanto, buscando desincentivar eventuais licitantes de fazerem lances excessivamente otimistas durante o processo de licitação, o que poderia comprometer a viabilidade econômica do projeto a longo prazo e resultar no fenômeno conhecido como “maldição do vencedor” (winner ‘s curse)[1], o projeto conjuga o critério de seleção pautado na menor tarifa com a previsão de aporte fixo e escalonado, proporcional ao desconto oferecido.

Trata-se de estratégia que já vem sendo adotada no âmbito dos leilões de rodovias promovidos pela ANTT e ARTESP como forma de proporcionar um equilíbrio saudável entre a modicidade tarifária e a necessidade de coibir a apresentação de propostas excessivamente agressivas, que poderiam prejudicar a execução contratual.[2] A razão disso é que, ao prever o aporte de recursos pelo concessionário logo no início do projeto (up front), a licitação acaba promovendo um estímulo extra para que o futuro concessionário dedique especial atenção ao impacto da sua proposta sobre o fluxo de caixa do projeto. Dessa forma, o concessionário passa a ter que se preocupar em sua proposta com a recuperação dos valores do aporte ao longo da execução do contrato.[3]

Perceba-se então que o aporte, nesse aspecto, cumpre o papel tradicionalmente desempenhado pela outorga, mas com uma diferença significativa: enquanto o valor de outorga pago pelo vencedor da licitação pode ser destinado a qualquer finalidade, o aporte, por sua vez, destina-se diretamente a alimentar um sistema de contas exclusivamente vinculado à própria concessão. Assim, esse sistema permite a criação de um mecanismo financeiro apto a gerenciar os recursos relacionados ao projeto de concessão e, ao mesmo tempo, assegurar um “colchão de liquidez” mínimo para a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, proporcionando maior segurança tanto para o concessionário quanto para o poder concedente.

Na modelagem proposta pelo Programa de Concessões Rodoviárias 2023-2026 do Estado de Mato Grosso, o futuro concessionário deverá realizar um depósito inicial correspondente a 20% do aporte em uma conta especificamente designada para essa finalidade, antes da assinatura do contrato, assegurando, assim, um compromisso financeiro inicial. Os 80% restantes deverão ser depositados em até um ano. Vale destacar que, uma vez realizados os depósitos iniciais na conta de aporte, os recursos serão transferidos para outras contas vinculadas à concessão, de onde poderão ser utilizados para assegurar o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato e atender a outras necessidades específicas.

Por meio dessa sistemática confere-se estabilidade ao projeto, evitando que custos adicionais sejam repassados aos usuários em caso de eventos adversos ao longo da concessão. Além disso, privilegia a segurança jurídica ao assegurar a disponibilidade de recursos para eventos imprevisíveis ao longo da execução contratual.

Além disso, a modelagem incorpora uma Matriz Operativa de Gestão de Riscos, uma inovação para projetos desse tipo, baseada em padrões internacionais, como os estabelecidos pelo Global Infrastructure Hub.[4] Essa matriz promove a divisão do risco em categorias, o que facilita sua identificação e alocação de modo mais eficiente. A Matriz Operativa também estabelece diretrizes flexíveis de mitigação, adaptáveis ao contrato de concessão e ao contexto regulatório. Entre as medidas previstas estão a criação de contas vinculadas, a exigência de garantias adicionais, a inclusão de gatilhos contratuais para revisão do reequilíbrio econômico-financeiro e a contratação de seguros para cobertura de perdas extremas.

Ainda, o projeto prevê a incorporação de inovações tecnológicas, ambientais e contratuais, como a implementação do sistema free flow para a cobrança de tarifas em todos os lotes, o uso de pesagem dinâmica de veículos e a adoção de diretrizes ESG (Environmental, social and Governance) para mitigar impactos ambientais e sociais – perspectivas já pautadas pela ANTT no âmbito federal, cuja implementação em contratos existentes encontra barreiras jurídica e práticas. O projeto, assim, ao incluir cláusulas que reforçam a necessidade de adaptação e resiliência das infraestruturas aos impactos das mudanças climáticas e desastres naturais, poderá servir de modelo, caso exitoso, para futuras modelagens atinentes às concessões de rodovias.

O tema da resiliência climática e da sustentabilidade já vinha sendo objeto de especial atenção em âmbito federal, sobretudo pelo Ministério dos Transportes que, no ano de 2023, promoveu parceria com a Deutsche Gesellschaft fur Internationale Zusammenarbeit (GIZ) visando analisar detalhadamente o grau de risco climático das rodovias e ferrovias diante de eventos climáticos extremos.[5] Complementarmente, em 1º de julho de 2024, foi publicada a Portaria nº 622 pelo Ministério dos Transportes, estabelecendo diretrizes importantes para a alocação de recursos em contratos de concessão, com foco no desenvolvimento de infraestrutura resiliente, na mitigação das emissões de gases de efeito estufa (GEE) e na transição energética.

A adoção de tais premissas pelo Poder Público indica uma necessária preocupação com pautas atuais de resiliência climática, diante da previsão de medidas estruturadas e integradas relativas à implementação de um Plano de Adaptação Climática e Mitigação de Desastres, incluindo ações como a elevação de trechos vulneráveis para prevenir inundações, a construção de sistemas de drenagem eficientes, e o uso de materiais resistentes a condições climáticas extremas.

Nota-se, ainda, a existência de obrigações do concessionário em desenvolver relatórios periódicos de mapeamento dos riscos climáticos, de modo a permitir a adoção de condutas visando a mitigação de riscos que possam impactar na continuidade dos serviços mesmo diante de eventos adversos. Trata-se de abordagem inovadora que busca preservar a integridade da infraestrutura rodoviária e também permitir uma operação mais sustentável e resiliente – modelo que, se bem executado, poderá servir como referência para futuros projetos de concessão.

Chama a atenção também a inclusão de regras específicas para regulamentar a formalização de pleitos de reequilíbrio cautelar e para a criação de um ambiente regulatório experimental, possibilitando o teste de inovações, por meio do denominado “sandbox contratual”. As disposições permitem criar um caráter autossustentável do projeto, ao reconhecer incompletude contratual inerente aos ajustes de longo prazo,[6] possibilitando uma adaptação mais eficiente às futuras mudanças sociais e tecnológicas.

Com efeito, o modelo desenvolvido no Programa de Concessões 2023-2026 de Mato Grosso traz diversas práticas desejáveis para o setor de rodovias – cuja implementação nos contratos de concessão atuais vem, ainda, encontrando muitas barreiras técnicas e legais. A regulação por contrato, conjugada com a atuação integrativa das agências reguladoras, necessita, afinal, sempre estar atenta às melhores práticas acerca do tema e é essencial para o sucesso das concessões rodoviárias, pois propicia um ambiente de maior consensualidade, transparência e segurança jurídica nestes contratos.[7] Assim, o êxito na modelagem poderá servir de exemplo para o aprimoramento na estruturação de novas concessões – garantindo um maior aprofundamento de temas como a resiliência climática e uma maior ênfase na criação de disposições contratuais que permitem uma regulação autossustentável destes projetos – cuja constante evolução lhes é inerente.


[1] AMORIM, Fábio Augusto de. O viés do otimismo em concessões rodoviárias: evidências, causas e soluções. Monografia (Especialização em Controle da Desestatização e da Regulação) – Instituto Serzedello Corrêa, Escola Superior do Tribunal de Contas da União, Brasília DF, 2023. Disponível em: <https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/o-vies-do-otimismo-em-concessoes-rodoviarias-evidencias-causas-e-solucoes.htm>. Acesso em: 19 set. 2024.

[2] Cumpre destacar que a atual 5ª etapa do Procrofe adota como escolha regulatória geral a previsão nos contratos de uma conta de aporte de recursos vinculados para serem utilizados como reserva de contingência da concessão. Confira-se nesse sentido: TCU. Acórdão nº 762/2024. Plenário. Relator: Aroldo Cedraz. Data de Julgamento: 17/04/2024

[3] FREITAS, Rafael Véras de. Maior Valor da Outorga em concessões: ainda uma discussão só jurídica?  Editora Forum, 2021.Disponível em: <https://editoraforum.com.br/noticias/maior-valor-da-outorga-em-concessoes-ainda-uma-discussao-so-juridica-coluna-direito-da-infraestrutura/>. Acesso em: 19 set. 2024.

[4] Project Management Institute. Guia PMBOK. 6ª Ed. Pennsylvania: PMI, 2017.

[5] BRASIL. Ministério dos Transportes. Sumário Executivo ADAPTAVIAS. Brasília: Ministério dos Transportes, 2023. Disponível em: <https://www.gov.br/transportes/pt-br/assuntos/sustentabilidade/Sumario_Executivo_ADAPTAVIAS.pdf>. Acesso em: 1º set. 2024.

[6] O tema foi abordado detalhadamente em: VALIATI, Thiago Priess. Direito da Infraestrutura: regulação dos setores de rodovias, ferrovias, portos e aeroportos. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2023.

[7] Segundo Pedro Gonçalves, o denominado contrato regulatório “pode revelar-se como um instrumento da administração reguladora; um instrumento utilizado para, através do consenso entre regulador e regulados, se proceder à formulação e/ou à implementação de normas regulatórias que disciplinam um determinado mercado” (GONÇALVES, Pedro Costa. Reflexões sobre o Estado Regulador e o Estado Contratante. Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 127). Ainda, para uma análise da regulação por contrato, ver: VALIATI, Thiago Priess. O sistema duplo de regulação no Brasil: a regulação do contrato complementada pela regulação da Agência. Revista de Direito Administrativo da Infraestrutura – RDAI. São Paulo: Thomson Reuters – Livraria RT, v. 3, n. 8, p. 23–58, 2019; e GARCIA, Flávio Amaral. A mutabilidade e incompletude na regulação por contrato e a função integrativa das agências. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 3, n.5, p. 59-83, mar./ago.2014.

Sobre o autor:

Sócio da Gama Monteiro Sociedade de Advogados. Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre Contratações Públicas da PUC-SP e do Grupo de Pesquisa de Atualidades na Contratação Administrativa da PUC-PR. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Regulatório (IBDRE)

Advogado, sócio do Razuk Barreto Valiati. Professor de Direito Administrativo em cursos de pós-graduação. Doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD/USP). Mestre e Bacharel em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar (IDRFB). Especialista em Direito Empresarial pela Faculdade da Indústria do Estado do Paraná (FIEP). Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Regulatório (IBDRE)

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