O perigo jurídico dos cigarros eletrônicos: de infração administrativa ao risco de criminalização

Proibições ampliadas pela Anvisa podem resultar em infrações administrativas e crimes como contrabando

Os cigarros eletrônicos são agrupados tecnicamente sob a expressão “dispositivos eletrônicos para fumar” (abreviado como DEF). É uma quantidade enorme de modelos, forma de funcionamento e vaporização, tipos distintos de substâncias usadas pelo usuário etc. Sua presença já é bastante difundida socialmente e são vistos usados cotidianamente. Porém, ao contrário dos cigarros tradicionais, os DEF’s são regulados de modo muito mais restritivo e a aparência de licitude irrestrita guarda grandes riscos jurídicos.

Desde 2009, por meio da RDC nº 46 da Anvisa, estava proibida a comercialização, importação e propaganda desses dispositivos. Recentemente, essa proibição foi reiterada e ampliada pela RDC nº 855/2024. As alterações regulatórias têm o potencial de enquadrar nas infrações administrativas também os usuários individuais e isso abre margem para situações juridicamente desconfortáveis. Para entender o impasse, precisamos esclarecer o que é proibido e seus potenciais desdobramentos.

A RDC nº 855/2024 da Anvisa dispõe que está “proibida a fabricação, a importação, a comercialização, a distribuição, o armazenamento, o transporte e a propaganda de todos os dispositivos eletrônicos para fumar”. Além dos atos já vedados desde 2009 (importação, comercialização e propaganda), somam-se fabricação, distribuição, armazenamento e transporte.

A regulação até 2009 previa condutas mais restritas à atividade empresarial. Porém, a ampliação em abril de 2024, com especial atenção às condutas realçadas acima, passa a ser de especial interesse também para o usuário individual. Isso significa que o particular que armazena ou transporta seu cigarro eletrônico praticaria infração administrativa.

Isso não significa (ainda) a prática de crime. A própria Resolução da Anvisa indica que a violação a essas regras constitui infração sanitária. Nesse tema, a Lei nº 6.437/77 é aquela que nos auxilia. Seu art. 2º traz as possíveis punições e, para o particular, relevante destacar a multa e a apreensão do produto. Essa punição pecuniária pode ser fixada entre R$ 2.000,00 e R$ 75.000,00 – o que já configura um potencial bastante severo. Em caso de agravantes (como a reincidência), a punição pode chegar a R$ 200.000,00.

No caso de empresas que negociem os produtos (incluindo os aparelhos, cartuchos de reposição etc.), podem sofrer interdição do estabelecimento, cancelamento de alvará e até a cassação da autorização para funcionamento. Com base nisso, percebemos que as consequências para particulares/consumidores e comerciantes são relevantes e podem ser bastante severas. A primeira conclusão relevante é: não é por ser “apenas” infração administrativa, que as consequências jurídicas seriam insignificantes.

Porém, a questão não acaba na esfera administrativa. Lembre-se que há (desde 2009) proibição de importação dos DEFs e seus insumos. Logo, se a mercadoria é proibida, fazer tal aquisição internacional configura o crime de contrabando (art. 334-A do Código Penal), com previsão de pena de reclusão de dois a cinco anos. Esse dado exige atenção tanto de quem está no campo empresarial, como do particular/consumidor – que pode fazer a aquisição em marketplaces diversos na internet e incidiria, em tese, no mesmo delito.

Em resumo: a proibição que já existia desde 2009 foi ampliada neste ano de 2024, as condutas configuram infração sanitária e, a depender do caso, até crime.

A situação pode ficar ainda mais confusa socialmente, porque existem legislações locais que dão tratamento aos cigarros eletrônicos como se fossem juridicamente equivalentes aos cigarros por combustão. Em Curitiba, por exemplo, a Lei Municipal 13.254/2009 proíbe o uso de produtos fumígenos em ambientes de uso coletivo (bares, restaurantes, academias, shoppings, área comum de edifícios residenciais etc.). Em 2023, essa lei foi alterada para prever, de forma expressa, que essa proibição se aplica também aos dispositivos eletrônicos para fumar.

Uma pessoa que observe esse cenário normativo pode ficar com a impressão equivocada, de que cigarros eletrônicos seriam juridicamente equivalentes aos cigarros por combustão. Porém, deixaria de considerar que os DEFs têm seu armazenamento e transporte proibidos; o que não se aplica aos cigarros por combustão.

Salvo nesses detalhes pontuais, a proibição jurídica dos cigarros eletrônicos é bastante clara e direta. O perigo jurídico real não se encontra aí, mas no fato de haver uma percepção social difusa de licitude desses produtos. Em razão de a maioria ter na nicotina sua matriz, há a tendência de associá-los, por falsa equivalência, aos cigarros tradicionais de tabaco. Esse dado, somado a um uso público sem grandes repercussões, faz com que a conduta seja normalizada e não acabe objeto especial de medidas de controle social (público ou privado).

Apesar da baixa visibilidade, ações públicas de fiscalização acontecem esporadicamente. A AIFU (Ação Integrada de Fiscalização Urbana) é uma articulação entre Polícia Militar e outros órgãos públicos fiscalizatórios (como Corpo de Bombeiros, Guardas Municipais, Secretarias estaduais e municipais) e diversos Estados brasileiros têm convênios desse tipo. No Estado do Paraná, diversas ações são feitas com foco nos cigarros eletrônicos. Há um foco específico sobre estabelecimentos comerciais, porque a atuação histórica era regida pela Resolução de 2009. Porém, com a ampliação recente da proibição e com consequências para a conduta de consumidores, é incerto como serão direcionadas futuramente as ações públicas de fiscalização.

A ausência de grande repercussão não é sinal de inexistência de proibição, mas apenas de baixa conveniência política para a atuação repressiva nesse campo. Eventual transformação desse cenário está a uma escolha política de distância: de um Secretário de Vigilância Sanitária, de um Comandante da Polícia Militar, de um Prefeito ou Governador em campanha de reeleição.

Queremos ressaltar que essa apresentação não se trata de uma campanha passa assustar quem nos lê. O objetivo é mostrar um fenômeno já conhecido da Criminologia da reação social. A própria conduta de fumar cigarros eletrônicos não ficou mais ou menos perigosa em razão dessa transformação regulatória. De igual forma, a efetivação de medidas públicas de fiscalização e punição desses usuários não depende da alteração da conduta destes últimos.

Os fumantes de cigarros eletrônicos seguem importando (crime de contrabando), transportando e armazenando DEFs (infração sanitária); a alteração em 2024, por Resolução da Anvisa, não teria capacidade de produzir grandes alterações comportamentais. Eventual crescimento na punição dessas condutas depende, quase exclusivamente, da decisão de outras pessoas, que não os próprios usuários de DEFs, por exemplo: agentes da Polícia Militar ou da Guarda Municipal.

Eis então o risco jurídico atual em torno do consumo de cigarros eletrônicos: a conduta socialmente difusa, naturalizada e percebida como lícita pode ser, a qualquer momento, alvo de profunda alteração de políticas públicas fiscalizatórias. A ampla faixa para escolha, na aplicação ou não dessas normas com consequências tão sensíveis, somente ilustra a margem de discricionariedade que existe no campo do controle social como um todo.

Sobre o autor:

Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estágio doutoral na Universidade de Hamburgo (Alemanha). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Advogado e membro da Comissão de Política sobre Drogas da OAB/PR.

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