A doutrina administrativa brasileira, como regra, não tem dedicado a devida atenção às questões relacionadas com a interpretação das normas administrativas no exercício da atividade administrativa.
Hamlet em diálogo com Horácio, após notícias da aparição do fantasma de seu pai, diz ao seu amigo: “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que pode sonhar tua filosofia”[1]. É preciso, pois, recordar os ensinamentos dos clássicos juristas romanos, cujo famoso brocardo assim sentenciava: “Dá-me os fatos que te darei o Direito”. Portanto, a norma ganha vida e se concretiza com a sua aplicação, ultrapassando, assim, a sua mera compreensão no plano abstrato ou do dever-ser.
Desse modo, a atividade de interpretação e aplicação das normas jurídicas, no caso, normas de gestão pública, não pode ser realizada sem que sejam observadas e consideradas as dificuldades reais de gestão, os obstáculos e as exigências das políticas que precisam ser efetivadas. Como diria Carlos Drummond de Andrade: “há uma pedra no meio do caminho”[2], e essas pedras são essenciais à construção do diálogo entre o abstrato e o real.
Nesse cenário, duas palavras são chaves para uma compreensão adequada do que estamos propondo: interpretação e aplicação. Nas palavras de Carlos Maximiliano[3], interpretar consiste em “explicar, esclarecer; dar significado de vocábulo, atitude, ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o verdadeiro sentido de uma expresão”.
Ainda, segundo o mesmo autor, a aplicação do Direito “consiste no enquadrar um caso concreto na norma jurídica adequada. Submete às prescrições da lei uma relação da vida real”.
Perceba, portanto, que há uma diferença substancial entre a atividade interpretativa e a aplicação da norma. A aplicação pressupõe a interpretação, mas esta pode acontecer apenas no plano abstrato. Logo, o processo de aplicação espelha uma relação de subsunção, de enquadramento entre o fato e a norma.
Assim, a interpretação tem como objeto o texto normativo para apontar o seu sentido, alcance e significação. Entretanto, os obstáculos e as dificuldades reais de gestão – o contexto fático, não podem ser ignorados nesse processo.
“O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.”[4]. Em outros termos, é preciso desenvolver um trabalho artesanal para dar significação ao texto normativo em virtude de seu encontro com a realidade, em razão de suas particularidades e de seus casuísmos.
No exercício da atividade administrativa, o agente público executa as suas atribuições mediante a interpretação de textos normativos, sendo alguns deles dotados de maior imprecisão e indeterminação quanto ao seu conteúdo (cláusulas que restrinjam ou frustrem o caráter competitivo); sendo outros revestidos de maior grau de precisão (a divulgação no PNCP é condição indispensável para a eficácia do contrato).
O que seriam ou quais cláusulas poderiam impactar sobre o caráter competitivo do certame? Não é uma resposta que pode ser apresentada em abstrato. A sua significação e a sua delimitação resultam do encontro do texto (norma) com o contexto fático, ou seja, a exigência de garantia em uma licitação pode impactar sobre a competição do certame?
Mais uma vez, não seria possível ter uma resposta segura apenas em abstrato, quer dizer, realizando apenas a interpretação da regra prevista no artigo 9º, I, “a”, da Lei n. 14.133/2021. Seria necessário, por exemplo, conhecer os agentes econômicos que atuam no mercado da contratação. Assim, sendo um mercado caracterizado pela atuação de pequenas empresas ou microempresas a exigência da garantia, por si só, poderia ser um fator limitante da competição, independentemente do seu percentual.
Esse será um dilema que sempre estará presente no dia a dia do agente público: construir uma significação que seja razoável e cuja aplicação seja factível. Para isso, pode contar com sua experiência pessoal, em razão das mais variadas e inusitadas situações práticas que tenha vivenciado – caso seja alguém caso seja alguém com vivência profissional no serviço público ou, não o sendo, realizando um processo de investigação quanto ao histórico de aplicação da norma.
Esse elemento de vivência profissional ou a compreensão da experiência de aplicação da norma refletem a ideia de prática administrativa, que se coloca como um farol a orientar a interpretação realizada pelo agente no exercício de suas atribuições legais e a estruturação da tomada de decisão, considerando o contexto fático e as consequências práticas dela resultantes.
Assim, no caso da exigência de garantia em mercado caracterizado pela presença de pequenas empresas ou empresas de pequeno porte, a experiência profissional poderia apontar no sentido de que tal exigência impactaria na competição do certame se for estabelecida em percentual superior a 2% do valor da contratação, uma vez que isso foi historicamente observado em tais contratações.
Portanto, em síntese, a execução da lei pressupõe a realização de uma atividade interpretativa, por meio da qual o texto normativo (cláusula que restrinja a competição) ganha significação ao encontrar a realidade de aplicação do Direito para, em face dela e a partir dela, sendo temperada pela experiência profissional do agente público (exigência de garantia em percentual superior a 2%), determinar a solução específica para a situação concreta (norma individual – se exigir garantia observar o limite de até 2%), estruturando, assim, o processo de tomada de decisão mediante diálogo entre o texto e o contexto fático.
[1] Hamlet, o Príncipe da Dinamarca, obra dramática escrita por William Shakespeare.
[2] Trecho do poema “No meio do caminho”.
[3] Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19. ed. Forense.
[4] Manoel de Barros, trecho do poema “O menino que carregava água na peneira”.
Sobre o autor:
Procurador Federal - AGU. Mestre em Direito pela UFRN. Professor Voluntário de Direito Administrativo da UNB. Autor do livro “Entre as alternativas possíveis e o erro grosseiro nas contratações públicas”.
Parabéns pelo excelente texto! É uma contribuição muito importante para a compreensão prática e real da aplicação da lei. A necessidade de um diálogo constante entre o abstrato e o real é fundamental para que estejamos sempre atentos às dificuldades e particularidades da vida prática.