O que esperar da ADI proposta pela OAB contra dispositivos da Lei de Licitações no STF

A ADI da OAB e o debate sobre normas gerais e específicas nas licitações

Na última sexta-feira, muita gente se surpreendeu com a notícia de que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) havia ingressado com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra dispositivos da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021). Antes de se impressionar, é preciso analisar o possível alcance dessa ação e, mais do que isso, as consequências de um possível deferimento do pedido.

ADI 7680 e os trechos impugnados

Os trechos impugnados pela OAB na ADI 7680 dizem respeito a regras sobre: a) Doações de bens móveis públicos; b) Doações e permutas de bens imóveis públicos.

Segundo a Ordem, as restrições impostas pelo artigo 76, inciso I, alínea “b” e “c”, inciso II, alínea “b” e §2º, interfeririam na liberdade patrimonial dos Estados, Distrito Federal e Municípios, violando, portanto, o princípio do pacto federativo e o sistema de repartição vertical de competências.

Na ação, a OAB pede que se conceda interpretação conforme à Constituição, a fim de que os dispositivos impugnados sejam aplicados somente à União, liberando os demais entes federativos para disporem de maneira diversa sobre a doação de seus bens móveis e sobre a doação e permuta de seus bens imóveis.

Como de praxe, a OAB pediu ainda que a questão fosse analisada em sede de medida cautelar.

Histórico de controvérsias sobre doações e permutas

É importante lembrar que, ainda nos primeiros meses da vigência da Lei nº 8.666/1993, o Governador do Rio Grande do Sul ingressou no STF com a ADI 927, questionando as restrições impostas por aquela lei às doações de bens imóveis públicos e às permutas de bens móveis públicos. Naquela oportunidade, a questão foi analisada apenas em sede de medida cautelar pelo Ministro Carlos Velloso, que decidiu que as normas impugnadas deveriam receber interpretação conforme, isto é, elas deveriam ser aplicáveis apenas no âmbito da União.

Depois da concessão da medida cautelar, a ADI jamais veio a ser apreciada pelo Tribunal Pleno para julgamento definitivo do mérito.

Passados quase trinta anos da apreciação da medida cautelar, em 11 de abril de 2023, o Ministro Nunes Marques julgou prejudicada a ação, nos termos do art. 21, IX, do Regimento Interno do STF, sob o equivocado argumento de que a Lei nº 8.666/1993 havia sido revogada pela Lei 14.133/2021. Na verdade, a Lei nº 8.666/1993 somente foi revogada em 30 de dezembro de 2023, ante a extensão da sua vigência pela Lei Complementar nº 198/2023.

A ausência de uma distinção clara entre normas gerais e normas específicas para a União

A ação de inconstitucionalidade proposta pela OAB reacende o debate sobre a diferenciação entre quais normas da lei geral de licitações devem ser consideradas gerais – aplicáveis indistintamente a todos os entes da federação – e quais devem ser consideradas específicas para a União, ficando os Estados, Distrito Federal e Municípios livres para dispor em sentido diverso.

O problema é mais antigo do que se imagina e vem desde que o art. 5º, XV, “b”, da Constituição Federal de 1946 previu que a União era competente para legislar sobre normas gerais de Direito Financeiro. Naquela época, as licitações eram consideradas matéria de Direito Financeiro, de modo que o velho Código de Contabilidade da União e o Regulamento Geral de Contabilidade Pública passaram a valer para os demais entes da federação.1

Em tempos mais recentes, a Constituição Federal de 1988, fugindo da disputa sobre o enquadramento das contratações públicas no Direito Administrativo ou no Direito Financeiro,2 optou por afirmar que compete privativamente à União legislar sobre normas gerais de “licitação e contratação” (art. 22, XXVII). Acontece que as leis gerais de licitação expedidas pela União desde então, incluindo a Lei nº 14.133/2021, não têm destacado inequivocamente no texto quais normas são gerais e quais normas se destinam apenas à União.

Prognósticos para a ADI proposta pela OAB

Historicamente, o Supremo Tribunal Federal tem se posicionado a favor de uma maior liberdade dos demais entes federativos para legislar sobre licitações.

Antes mesmo da Constituição Federal de 1988, em 1980, foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal a Representação nº 1.057, que, por solicitação do Governador do Estado de São Paulo, arguiu a inconstitucionalidade do art. 94 do Decreto nº 73.140/1973, sob o argumento de invadir competência supletiva estadual para estabelecer normas de Direito Financeiro. No caso, discutia-se a competência da União para impor a aplicação da regulamentação federal sobre licitações e os contratos relativos a obras e serviços de engenharia aos Estados e Municípios. Seguindo o voto do Ministro Moreira Alves, o Tribunal Pleno acolheu a arguição de inconstitucionalidade e entendeu que a União não poderia invadir a competência suplementar dos Estados e Municípios.

Já em 1985, no julgamento da Representação nº 1.258, o STF decidiu que as disposições do Decreto-lei nº 200/1967 e da Lei nº 5.456/1968 correspondiam, sim, a normas gerais sobre licitações públicas, confirmando que os demais entes políticos da federação teriam apenas a responsabilidade de suplementar aqueles diplomas normativos, sem, no entanto, introduzir inovações.

Como as leis gerais de licitação posteriores ao julgamento de 1985 não distinguiram quais dispositivos da lei seriam gerais e específicos, retomou-se com força a tese de que a União não poderia invadir competência estadual e municipal para impor a esses entes todas as disposições da lei geral.3 Por conseguinte, da dificuldade no reconhecimento dessas normas no texto da lei, surgiram diversas tentativas doutrinárias de se estabelecer uma linha divisória.4

Decisões recentes e a Lei nº 14.133/2021

Em 1993, com a decisão cautelar do Ministro Carlos Velloso na ADI 927, a questão se encaminhou nos anos seguintes para uma distinção caso a caso pelo próprio tribunal. Nesse sentido, o STF discutiu por muito tempo acerca da possibilidade de Estados, Distrito Federal e Municípios alterarem a ordem das fases das licitações, algo que somente restou confirmado recentemente, quando a Lei nº 8.666/1993 já não estava mais em vigor.

Já quanto a Lei nº 14.133/2021, embora ela tenha endereçado diversas questões à disciplina dos regulamentos a serem expedidos por cada ente, ela ainda assim desce às minúcias em determinados capítulos e seções. É o caso, por exemplo, do Capítulo IX, dedicado às alienações – onde se situam os dispositivos agora questionados no STF – que praticamente reproduz as mesmas regras da antiga Lei nº 8.666/1993. Com efeito, nesses casos há realmente espaço para se distinguir isoladamente sobre normas gerais e normas específicas para a União.

Perspectivas para a ADI 7680

Assim, a julgar por esse histórico, há uma probabilidade bastante razoável de que o STF defira o pedido de medida cautelar e mantenha a linha que oportuniza aos demais entes da federação ter maior liberdade para dispor sobre seu patrimônio.

Em termos práticos, no entanto, é algo bastante pontual e que vai afetar muito pouco o dia a dia de quem lida com licitações e contratos administrativos.


Referências

  1. Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles explica a interpretação então predominante à luz da Constituição Federal de 1946: “a concorrência está regulada pelo Código da Contabilidade Pública (lei federal n. 4. 536, de 28-1-1922) e respectivo Regulamento (decreto n. 15. 783, de 8-11-1922), e, no que respeita à administração financeira dos Estados-membros e Municípios, a legislação precedente se acha complementada pelo decreto-lei federal n. 2. 416, de 17 de julho de 1940 (…) Tal exigência, a despeito de estabelecida por normas federais, é obrigatória tanto para os contratos da União, como dos Estados-membros e Municípios, assim como para os de suas autarquias e entidades paraestatais constituídas com patrimônio público. E assim é, porque as normas gerais de direito financeiro são da competência originária da União (Const. Fed., art. 5.º, XV, b), só sendo permitido aos Estados-membros (não aos Municípios) legislar supletiva e complementarmente sôbre a matéria (Const. Fed., art. 6.º)” (MEIRELLES, Hely Lopes, Direito administrativo brasileiro, 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 243). No mesmo sentido, ATALIBA, Geraldo, Reformulação da legislação sobre concorrência pública, Revista dos Tribunais, v. 375, p. 24–29, 1967, p. 26; RIBEIRO, Manoel, Aspectos jurídicos do projeto de código de contabilidade pública da união, Revista de Direito Administrativo, v. 79, p. 38–48, 1965, p. 39. Com a mesma conclusão, mas por fundamento no art. 42, Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, anexo à Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, que prescreveu, à Administração Estadual, as normas jurídicas que disciplinam a contabilidade pública da União quanto (…) à realização das despesas”, cf. LIMA, Ruy Cirne. São aplicáveis à administração do Estado do Rio Grande do Sul as disposições das leis de contabilidade pública da União. In: Pareceres (Direito Público). Porto Alegre: Sulina, 1963, p. 65. ↩︎
  2. O próprio STF, em 1981, decidiu que “as normas atinentes à licitação se situam no campo do direito financeiro, e não no do direito administrativo” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, Representação no. 1.057, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 25.11.1981, p. 65). ↩︎
  3. Nesse sentido, MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Licitações: inaplicabilidade da nova regulação sobre licitações a estados e municípios e inconstitucionalidade radical do Decreto-lei 2300/86. Revista de Direito Público, v. 20, n. 83, p. 28, 1987; ZANCANER, Weida. Inaplicabilidade do dec.-lei 2.300/86, a Estados e municípios. Revista de Direito Público, v. 20, n. 82, p. 173, 1987; CARDOZO, José Eduardo Martins. O decreto-lei 2.300/1986 e a obrigatoriedade das licitações para Estados e municípios. Revista dos Tribunais, v. 76, n. 619, p. 311, 1987; SUNDFELD, Carlos Ari, Reajustamento de preços nos contratos administrativos, Revista de Direito Público, v. 21, n. 86, p. 79–87, 1988, p. 84. ↩︎
  4. MUKAI, Toshio. O estatuto jurídico das licitações e contratos administrativos. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 10; MENDES, Raul Armando. Comentários ao estatuto das licitações e contratos administrativos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p. 197; GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 210; BORGES, Alice Gonzalez, Normas gerais nas licitações e contratos administrativos: contribuição para a elaboração de uma lei nacional, Revista de Direito Público, v. 24, n. 96, p. 81–93, 1990; DALLARI, Licitação, p. 123–124; RIGOLIN, Ivan Barbosa. Manual prático das licitações: decreto-lei n. 2.300, de 21-11-1986. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 57–58; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo, Normas Gerais Sobre Licitações e Contratos Administrativos – Natureza e Identificação no Estatuto Jurídico Federal Vigente – Perspectiva de Novos Projetos Modernizadores, Revista de Direito Administrativo, v. 189, p. 39–57, 1992, p. 45–52. ↩︎

Sobre o autor:

Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo - USP, Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB, Especialista em Economia Nacional pela The George Washington University - GWU e Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Procurador Federal na Advocacia-Geral da União.

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