Há, em alguma medida, um forte debate acadêmico a respeito do caráter autoritário da Administração Pública, cuja atuação efetiva-se, no mais das vezes, mediante edição de atos administrativos unilaterais. Basta rememorar as atividades decorrentes do exercício do poder de polícia.
Além disso, foi desenvolvida uma atuação marcadamente adversarial, ou seja, contenciosa, litigiosa. Essa característica também está presente na formação acadêmica dos estudantes de Direito nas universidades brasileiras, quando tradicionalmente são ensinados a repetirem dogmas restritivos, e instigados a pensar que não há abertura para o debate no Direito Administrativo. Porém, é importante destacar que, nos últimos anos, tem-se observado uma mudança dessa postura no sentido de uma atuação mais dialógica.
O movimento dialógico ganha reforço, por exemplo, diante da inefetividade da atuação contenciosa que, ao longo de anos, pode ser representada pela aplicação de sanções administrativas áridas e, muitas vezes, ineficientes, que só reiteram o viés puramente punitivista estatal. O administrado, lembrando de Chico Buarque de Holanda, obriga-se a cantarolar e se questionar “Como beber dessa bebida amarga? Tragar a dor, engolir a labuta?”
E nesse cenário, eis que o Direito Administrativo, usando as palavras de Manoel de Barros, afirma: “Deixei uma ave me amanhecer”, uma vez que é preciso se renovar e revistar novos mecanismos para a realização do interesse público. No caso, a edificação de soluções consensuais, pautadas pela boa-fé e pela confiança nas relações com os administrados.
Porém, antes de avançar nas reflexões a respeito da cláusula geral de consensualidade administrativa prevista no artigo 26, da Lei n. 13.655/2018, que alterou a LINDB[1], é preciso começar “colocando um ponto final. Pelo menos já é um sinal. De que tudo na vida tem fim”[2], razão por que é necessário superar alguns dogmas que orbitam a atuação consensual da Administração Pública.
O primeiro deles trata-se da correlação entre o princípio da legalidade e a exigência de autorização específica para a realização de acordos administrativos. A doutrina sempre destacou esse debate, apontando a insegurança jurídica em virtude da inexistência de um dispositivo legal específico autorizador da consensualidade administrativa.
E assim, pensamos que – e aqui com todas as vênias ao entendimento contrário ao nosso – o princípio da legalidade tutela a pessoa perante o Estado, sendo, portanto, instrumento de proteção e contenção do arbítrio estatal.
Não há dúvidas de que a legalidade são os trilhos ordenadores da conduta da Administração Pública, e seguimos sua correta aplicação. No entanto, o que se busca, na verdade, é a conscientização da importância do diálogo, da consensualidade, no momento da respectiva aplicação, ou seja, um movimento no sentido de buscar alternativas que possam ir além da solução pronta e acabada que, em razão dessa rigidez, poderá não se revelar como sendo adequada para o problema das partes.
Manoel de Barros nos lembra que “quem anda no trilho é trem de ferro. Sou água que corre entre pedras – liberdade caça jeito.”, logo, defende-se que a busca pela efetiva realização do interesse público pode ser concretizada mediante atuação dialógica e consensual entre as partes – Administração Pública e Administrados – de modo que essa solução e os seus normativos estruturantes possam ser os fundamentos da atuação administrativa.
Para tanto, afasta-se o segundo dogma, ou seja, o entendimento tradicional a respeito da supremacia e indisponibilidade do interesse público, uma vez que o acordo pode ser a via adequada para afirmá-lo. Basta tomar como exemplo composições envolvendo interesses ambientais e agrários.
Essa nossa percepção encontra suas razões fundantes no giro democrático e constitucional do Direito Administrativo. A Constituição Federal de 1988 afasta a consistência autoritária que qualificava tradicionalmente o Direito Administrativo.
Desse modo, a “palavra quando acesa. Não queima em vão. Deixa uma beleza posta em seu carvão.”, como já cantava o conjunto musical Quinteto Violado[3]. A consensualidade ganha relevância constitucional, uma vez que os giros do Direito Administrativo orientam a compreensão do processo como instrumento para construção de soluções com a participação dos afetados, sendo, portanto, mecanismo para afirmação da democracia.
Assim, o artigo 26 da Lei n. 13.655/2018 rompe, definitivamente, com a visão clássica e tradicional do Direito Administrativo. “O por do sol vai renovar brilhar de novo o seu sorriso”[4], uma vez que foi instituída a cláusula geral de consensualidade administrativa. Esse é o seu grande mérito, posto que afasta eventual insegurança jurídica normativa para a celebração de acordos administrativos.
Por fim, o Pequeno Príncipe nos ensina que “o que torna belo o deserto, é que ele esconde um poço nalgum lugar…”. O que torna bela a consensualidade é que ela “esconde” alguma possibilidade de construção de solução que seja razoável, adequada e vocacionada à composição de interesses com a participação dos afetados e, em razão disso, o desenvolvimento democrático das atividades da Administração Pública.
[1] Decreto-lei n. 4.657/1942.
[2] Paulinho Moska, trecho da música Tudo novo de novo.
[3] Trecho da música Palavra Acesa.
[4] Luiz Melodia, trecho da música Magrelinha.
Sobre o autor:
Procurador Federal - AGU. Mestre em Direito pela UFRN. Professor Voluntário de Direito Administrativo da UNB. Autor do livro “Entre as alternativas possíveis e o erro grosseiro nas contratações públicas”.
Muito bom, parabéns!
Obrigado, jovem!!!