Medidas de segurança e reforma psiquiátrica – parte 1: a formação do sistema dual

O impacto da reforma psiquiátrica nas medidas de segurança para infratores com transtorno mental

Recentemente, começamos a perceber um aumento nas movimentações de várias instituições discutindo a aplicação da Lei da Reforma Psiquiátrica para as pessoas submetidas a medidas de segurança na esfera penal. Esse incremento foi bastante impulsionado pela Resolução nº 487/2023 do CNJ. Este texto, em razão da complexidade da questão, foi dividido em múltiplas partes. Nesta primeira, nosso foco está voltado para a formação de um “sistema dual” para lidar com pessoas com transtorno mental, que oferece duas respostas jurídicas diferentes para o mesmo grupo social.

Respostas jurídicas ao transtorno mental: Código Penal e Lei 10.216/2001

Do ponto de vista normativo, a questão das medidas aplicáveis às pessoas com transtorno mental não é regulada unicamente pela Lei 10.216/2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica ou Lei Antimanicomial). Ela foi fruto de um longo embate político no Brasil, que culminou na abolição legal dos manicômios. A discussão em torno dessa temática é extremamente densa e uma tomada de opinião imediata pelo(a) leitor(a) será, fatalmente, precipitada e imatura[2].

Essa lei de 2001 estabeleceu três modalidades de internação para tratamento psiquiátrico:

  • Voluntária: a pedido da própria pessoa;
  • Involuntária: a pedido de terceiro (familiares, responsáveis etc.), nos casos em que o indivíduo não está em condições de manifestar a própria vontade;
  • Compulsória: por determinação judicial, em situações extremas e absolutamente excepcionais.

Também por estipulação legal, essa internação (independente da modalidade) somente ocorre em situações excepcionais (quando as alternativas que não envolvem internação sejam insuficientes) e depende de laudo médico circunstanciado[3]. Por fim, a Lei proíbe, sem margem para discussão, o emprego de instituições de características asilares (explicaremos essa noção abaixo).

O Código Penal, por sua vez, também traz uma resposta para alguns casos de pessoas com transtorno mental que pratiquem condutas análogas a crime. Em casos extremos, esses transtornos podem tornar a pessoa inimputável, leia-se: incapaz de compreender a característica criminosa do seu ato ou, mesmo quando tem essa compreensão, não consegue agir de acordo com ela (art. 26 do CP[4]).

Frise-se que nem todo o transtorno mental produz essa situação. A maior parte deles não muda a responsabilidade penal do indivíduo, que segue sendo punido criminalmente sem modificações. Alguns transtornos podem diminuir a pena, mas a punição segue sendo aplicada. Somente casos extremos produzem a situação de inimputabilidade.

Para esses inimputáveis, o Código Penal indica que o juiz determinará, como regra, a internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico (HCTP). Somente de modo excepcional, pode o juiz determinar um tratamento que não envolva a internação (art. 97 do CP). Para complicar a situação, o HCTP é uma instituição de característica asilar.

Instituições asilares e pessoas em condição asilar

A definição de instituição asilar pode gerar alguma dúvida, quando são lidos textos especializados no tema. Basicamente, a definição costuma assumir foco em um destes critérios: ou observa uma característica da instituição, ou uma condição da pessoa internada.

A Lei 10.216/2001 dispõe[5] ser instituição asilar, aquela que não possui estrutura para fornecer serviços de assistência integral e exemplifica alguns deles: serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer e outros. Ou seja, é possível perceber que o rol desses serviços é exemplificativo, porém, ainda mais relevante, é declarar que a internação não pode ter exclusivamente características de tratamento médico. Também tem natureza asilar aquela instituição incapaz de assegurar os direitos básicos elencados no art. 2º, parágrafo único, da Lei Antimanicomial.

Outros textos trazem definição com foco diverso. De modo ilustrativo, a Lei 11.189/95 do Estado do Paraná indica que “asilar” é uma condição da pessoa internada e não uma característica da instituição. Veja-se seu art. 12:

Aos pacientes asilares, assim entendidos aqueles que perderam o vínculo com a sociedade familiar, e que se encontram ao desamparo e dependendo do Estado para sua manutenção, este providenciará atenção integral, devendo, sempre que possível, integrá-los à sociedade através de políticas comuns com a comunidade de sua proveniência.

Ao contrário da legislação federal, a Lei paranaense considera que asilar é uma característica da pessoa; é alguém que depende da instituição para sua manutenção e não dispõe de condições sociais, familiares, econômicas e pessoais para seu cuidado. Aqui, a pessoa em condição asilar se confunde com a “situação de grave dependência institucional”, conforme definida no art. 5º da Lei 10.216/2001[6].

É comum encontrar em textos[7] a utilização da expressão “asilar” com este segundo sentido, o que pode produzir confusões conceituais quando se trabalha a questão, sem a adequada diferenciação. Com essa delimitação, percebe-se que a definição da Lei da Reforma Psiquiátrica tem foco na instituição. “Ser asilar” é uma característica da instituição; e o emprego desse tipo de instituição é legalmente proibido desde 2001.

Diante disso, as disposições do Código Penal encontram aqui mais um elemento complicador: todos os HCTPs possuem características asilares; nenhum deles é capaz de prover serviços de assistência integral[8]. Ao contrário, uma de suas características é a produção de situação de dependência institucional e a inexistência de mecanismos (dentro do Sistema Penitenciário) para tentar a ruptura dessa condição.

Para ter uma ideia desse cenário, recomenda-se o estudo do levantamento de uma equipe coordenada por Débora Diniz[9] no ano de 2011 (dez anos após a entrada em vigor da Lei 10.216). Trata-se do maior trabalho de levantamento de dados in loco, abrangendo todos os 23 HCTPs do país e 3 alas de tratamento psiquiátrico em instituições penitenciárias.

O sistema dual do transtorno mental

Com base nas delimitações acima, temos a separação de duas respostas jurídicas para o mesmo grupo de pessoas:

  • Código Penal (dispositivos de 1984): a internação em instituição asilar (HCTP) é a regra; o tratamento sem internação é exceção;
  • Lei 10.216/2001: a internação é a exceção e o tratamento sem internação é a regra; é absolutamente proibido o emprego de instituição asilar.

Estudiosos da área jurídica olhariam para este cenário e diriam: “a solução é fácil; na contradição de legislações de mesma hierarquia, prevalece a mais específica ou a mais recente (se idêntico o grau de generalidade)”.

A Lei de 2001 é posterior aos dispositivos problemáticos do Código Penal. De igual forma, tem maior grau de especialidade, porque regula a proteção específica de uma categoria de pessoais vulneráveis – portadores de transtorno mental. Situação equivalente acontece com outras legislações: o Estatuto da Pessoa Idosa e a Lei Maria da Penha, por exemplo, têm dispositivos que contradizem normas do Código Penal e do Código de Processo Penal e, nesse conflito, as legislações especiais prevalecem sobre os Códigos (mais gerais).

Apesar da aparentemente simples solução jurídica para o conflito, a realidade seguiu rumo diferente. O que se viu formado foi um verdadeiro sistema dual para lidar com a questão: no caso de pessoa inimputável por transtorno mental, que venha a cometer infração penal, a primeira opção é internação em instituição asilar; para as demais pessoas em sofrimento psíquico, aplica-se a atenção da rede de saúde, na forma da Lei 10.216/2001.

A situação contraditória e em frontal conflito com a legislação federal já vem sendo objeto de atenção há mais de vinte anos. Porém, mais e mais, o atraso na implementação junto ao sistema penitenciário das disposições da Lei 10.216/2001 tem ganhado atenção doutrinária[10] e política. O foco tende, na esmagadora maioria das análises, em concluir pela inadequação desse “sistema dual”, que faz sobreviver, no sistema penal, o tratamento da questão sob a antiquada noção de “periculosidade”[11], voltada para um grupo duplamente vulnerabilizado – pelo transtorno mental e pela criminalização.


Referências

[1] Por exemplo, manifestações de entidades médicas (CFM, CRM-RS, CRM-SP), uma audiência pública no Senado Federal, o Projeto de Decreto Legislativo nº 81/2023 na Câmara dos Deputados, uma nota de diversas instituições sobre a situação de impasse jurídico quanto ao HCTP em Santa Catarina (publicação no Instagram e íntegra da nota).

[2] Para uma história da reforma psiquiátrica no Brasil: HIRDES, Alice. A reforma psiquiátrica no Brasil: uma (re)visão. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 297–305, 2009; LÜCHMANN, Lígia Helena Hahn; RODRIGUES, Jefferson. O movimento antimanicomial no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 399–407, 2007.

Para a crítica das instituições manicomiais e o controle disciplinar asilar: BASAGLIA, Franco. La institución negada: informe de un hospital psiquiátrico. 2. ed. Buenos Aires: Ediciones Corregidor, 1972.; FOUCAULT, Michel. História da loucura. tradução: José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2007; GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974; SZASZ, Thomas. The manufacture of madness: a comparative study of the inquisition and the mental health movement. Nova Iorque (EUA): Syracuse University Press, 1997.

[3] Art. 4º da Lei nº 10.216/2001: A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

Art. 6º: A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.

[4] Art. 26 do CP: É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

[5] Art. 4º, § 2º O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.

§ 3º É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no § 2º e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2º.

[6] Art. 5º: O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário.

[7] FURTADO, Isabela Tonon. A Resolução no 487 do Conselho Nacional de Justiça e a situação das pessoas em condição asilar no Complexo Médico Penal de Pinhais (PR). Ius Gentium, Curitiba, v. 14, n. 2, p. 92–112, 2023. Disponível em: https://www.revistasuninter.com/iusgentium/index.php/iusgentium/article/view/721. Acesso em: 22 jul. 2024.

PRADO, Alessandra Mascarenhas; SCHINDLER, Danilo. A medida de segurança na contramão da Lei de Reforma Psiquiátrica: sobre a dificuldade de garantia do direito à liberdade a pacientes judiciários. Revista Direito GV, São Paulo, v. 13, n. 2, p. 628–652, 2017. Disponível em: http://periodicos.fgv.br/revdireitogv/article/view/70852. Acesso em: 22 jul. 2024.

[8] OLIVEIRA, Aline Sanches; DIAS, Fernando Machado Vilhena. Andando na contramão: o destino dos indivíduos com transtorno mental que cometem crimes no Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 28, n. 3, p. 1–22, 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312018000300600&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 24 jul. 2024, p. 14.

[9] DINIZ, Debora. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011. Brasília: LetrasLivres; Editora Universidade de Brasília, 2013.

[10] Sem dúvida, a produção com maior visibilidade é a exposição na obra doutrinária penal de Juarez CIRINO DOS SANTOS (Direito Penal: parte geral. 10. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022, p. 639-653). A exposição do referido professor, por sua vez, foi profundamente influenciada pelas teses doutorais de Mariana de Assis Brasil e Weigert (Entre silêncios e invisibilidades: os sujeitos em cumprimento de medidas de segurança nos manicômios judiciários brasileiros. 2015. Tese – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/140989. Acesso em: 19 jul. 2022) e Thayara Silva Castelo Branco (Medidas de segurança no Brasil: o exercício do poder (penal) no âmbito da normalização terapêutica. 2016. Tese – PUCRS, Porto Alegre, 2016. Disponível parcialmente em: https://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/6751. Acesso em: 18 jul. 2024). Este último texto foi publicado na forma de livro – atualmente na segunda edição – sob o título “A (Des)Legitimação das Medidas de Segurança no Brasil”.

[11] A categoria da periculosidade e sua utilização no campo penal é um tema que mereceria um texto próprio. Se este ou outro tema for de interesse do(a) leitor(a), pode enviar uma mensagem com questões ou sugestões de temas para ocrimenosso@gmail.com ou para nossa página no Instagram (@ocrimenosso).

Sobre o autor:

Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estágio doutoral na Universidade de Hamburgo (Alemanha). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Advogado e membro da Comissão de Política sobre Drogas da OAB/PR.

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