No mês passado, o Estado da Flórida tomou uma decisão polêmica ao proibir a produção de carne cultivada em laboratório, sob a alegação de resistir a um pretenso “plano da elite global” para eliminar o consumo de proteína animal. Essa medida é surpreendente, especialmente diante da retórica governamental que promove a Flórida como um “free state” – um Estado em que a liberdade econômica e individual são supostamente prioritárias.
A carne cultivada em laboratório, também chamada de carne limpa ou carne de cultura, representa uma inovação significativa no setor alimentício. Essa tecnologia promete reduzir o impacto ambiental da pecuária tradicional, melhorar a segurança alimentar e atender às necessidades de consumidores com restrições dietéticas ou preocupados com o bem-estar animal e a sustentabilidade. No entanto, a recente proibição estadual impediu que empresas e consumidores explorassem novas oportunidades tecnológicas.
A contradição do “free state”
A decisão do governo da Flórida levanta questões sobre a coerência entre suas políticas e a filosofia de liberdade que o governador Ron DeSantis afirma representar. Proibir uma tecnologia que pode abrir novos horizontes parece contraditório com a ideia de um Estado que valoriza a liberdade econômica e a inovação.
Na verdade, a proibição reprime os interesses de uma parcela significativa da sociedade que opta por não consumir carne convencional por motivos éticos, ambientais ou de saúde. Ao impor essa restrição, o governo está, na prática, limitando a liberdade de escolha dos consumidores e a capacidade dos empreendedores de inovar.
Hayek e a inovação sufocada
Para entender melhor as implicações desta proibição, pode-se recorrer ao pensamento de Friedrich Hayek, um dos maiores pensadores da liberdade econômica. Em sua obra seminal “O Caminho da Servidão” (The Road to Serfdom), Hayek parte da premissa de que a intervenção excessiva do governo na economia pode levar a um estado de controle centralizado, no qual a liberdade individual é gradualmente suprimida.[1]
Segundo Hayek, uma das principais ameaças à liberdade é a tendência de substituir a iniciativa privada pela regulamentação governamental. Ele enfatiza que a inovação e o progresso são frutos da liberdade individual e da capacidade dos mercados de se ajustarem e evoluírem. Com efeito, a interferência governamental excessiva pode criar um ambiente onde a criatividade e a iniciativa são sufocadas, levando à estagnação econômica e social.
Falta de justificativa para intervenção
Admite-se que a intervenção estatal pode ser necessária em certas circunstâncias, como em casos de externalidades significativas, monopólios e concorrência desleal, bens públicos e assimetrias de informação. A proibição da carne cultivada em laboratório na Flórida não se enquadra em nenhuma dessas categorias.
A princípio, não há evidências claras de que a produção de carne cultivada cause danos ambientais ou à sociedade que justifiquem a intervenção. Pelo contrário, essa inovação tecnológica pode mitigar problemas associados à pecuária tradicional, como a emissão de gases de efeito estufa e o uso intensivo de recursos naturais.
Além disso, a proibição pura e simples impede que o mercado se adapte e inove de maneira eficiente. Nesse quesito, a capacidade dos mercados de evoluir e incorporar novas tecnologias é essencial para o progresso econômico e social. Assim, ao restringir a produção de carne cultivada, o governo da Flórida está, na prática, retardando o avanço tecnológico e impedindo a exploração de alternativas mais sustentáveis e éticas à produção de carne convencional.
Essa abordagem não apenas vai contra os princípios defendidos por Hayek, mas também coloca o Estado em um caminho que pode ser visto como mais controlador e centralizado – um caminho que Hayek advertiu ser perigoso e contrário ao espírito de um estado verdadeiramente livre.[2]
Repressão de interesses legítimos da sociedade
A decisão de proibir a carne cultivada também sufoca os interesses de uma parcela significativa da sociedade que opta por não consumir carne convencional. Muitas pessoas escolhem evitar a carne tradicional por questões amplamente legitimadas por direitos fundamentais reconhecidos por países como Estados Unidos e Brasil. Ao adotar tal medida, reprime-se simultaneamente a liberdade de pensamento e o direito à saúde, além de desconsiderar sumariamente qualquer preocupação com o meio ambiente equilibrado.
A rigor, parece plenamente razoável a posição de que a carne cultivada pode ser uma alternativa viável para atender a essas preocupações, proporcionando uma fonte de proteína que não envolve o abate de animais, atende à dieta de alguns indivíduos e tem um impacto ambiental menor. Ao proibir essa inovação, a Flórida está ignorando as necessidades e preferências de uma parcela relevante de sua população, limitando suas opções e liberdade de escolha.
Conclusão
A postura da Flórida ilustra uma contradição fundamental entre a retórica de liberdade e as ações regulatórias do Estado. Em tempos de crescente confusão entre liberalismo econômico, questões morais e narrativas politizadas, é essencial distinguir entre a real liberdade de mercado e as tentativas de regular a inovação sob pretextos variados. Nesse contexto, o pensamento de Friedrich Hayek é fundamental para separar bem as coisas. A proibição é prejudicial, inibe a inovação e os interesses de consumidores que buscam alternativas à carne convencional. O caso da Flórida exemplifica como a regulação imprudente pode desvirtuar princípios caros à sociedade contemporânea, levando a uma realidade que se assemelha mais a um Estado controlador do que a um “free state.”
[1] HAYEK, Friedrich. The Road to Serfdom. New York: Routledge, 2006, p. 54-55.
[2] HAYEK, Friedrich. The Road to Serfdom. New York: Routledge, 2006, p.124.
Sobre o autor:
Pós-doutorando em Direito na Universidade de São Paulo - USP, Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo - USP, Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB, Especialista em Economia Nacional pela The George Washington University - GWU e Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Procurador Federal na Advocacia-Geral da União.