A Inteligência Artificial (IA) já não é uma promessa futura; ela é uma realidade consolidada em diversas áreas do conhecimento e das atividades humanas. No campo jurídico, seu impacto tem sido profundo e transformador. Ao automatizar tarefas repetitivas, como a revisão de documentos e a pesquisa jurídica, a IA promete eficiência sem precedentes. Além disso, sua capacidade de análise de grandes volumes de dados permite uma precisão analítica que antes era inimaginável.
No entanto, o entusiasmo em relação à IA precisa ser temperado com uma avaliação crítica de seus riscos éticos. A adoção indiscriminada ou inadequada pode comprometer não apenas a qualidade dos serviços jurídicos, mas também a integridade da própria advocacia.
A Relevância e as Armadilhas da IA na Advocacia
A presença da IA nos escritórios de advocacia é crescente. Ferramentas de automação já são utilizadas para a análise de contratos, pesquisa de jurisprudência, previsão de decisões judiciais e até mesmo na elaboração de peças processuais. Essas funcionalidades não apenas aumentam a produtividade, mas também permitem que os advogados concentrem seu tempo em atividades mais complexas e estratégicas.
Porém, é exatamente aí que reside o perigo. A comodidade tecnológica pode criar uma falsa sensação de segurança. Recentemente, surgiram casos de advogados que confiaram cegamente em ferramentas de IA para a elaboração de petições, resultando na apresentação de documentos contendo citações jurídicas inexistentes ou análises equivocadas. Trata-se, aqui, não é apenas de questão de competência; é uma questão de responsabilidade ética.
Preocupações Éticas: Muito Além da Precisão
O uso da IA na advocacia levanta questões éticas complexas, além da simples precisão das informações geradas. Abaixo, destacam-se algumas das principais preocupações:
1. Confidencialidade e Proteção de Dados
A IA depende de grandes volumes de dados para funcionar de maneira eficaz. No entanto, ao utilizar essas tecnologias, advogados podem inadvertidamente expor informações sensíveis de seus clientes. A conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) é indispensável, mas não é suficiente. É essencial adotar medidas de segurança cibernética robustas e garantir que os dados sejam armazenados e processados de forma segura e ética.
2. Veracidade e Confiabilidade das Informações
Embora a IA seja poderosa, ela não é infalível. Modelos de linguagem generativa podem criar conteúdo que parece plausível, mas que é totalmente falso (as denominadas “alucinações”). A responsabilidade pela verificação da veracidade das informações permanece inteiramente com o advogado. Confiar cegamente na IA constitui negligência profissional, e é risco direto à integridade do processo.
3. Supervisão Humana e Julgamento Profissional
A IA pode ser uma ferramenta de apoio, mas não substitui o julgamento jurídico. Questões como interpretação da lei, estratégia processual e tomada de decisões complexas requerem discernimento humano e experiência prática. A IA pode fornecer informações, mas a decisão final deve sempre caber ao advogado, que deve interpretar e contextualizar os dados fornecidos.
4. Transparência e Consentimento Informado
Os clientes têm o direito de saber quando e como a IA está sendo utilizada em sua representação jurídica. A transparência é uma obrigação ética. O consentimento informado deve incluir uma explicação clara sobre as limitações da IA, bem como os potenciais riscos e benefícios de seu uso.
5. Vieses Algorítmicos e Discriminação
A IA aprende com dados históricos, que podem conter vieses sociais e culturais. Se não forem cuidadosamente monitorados, esses vieses podem ser replicados e ampliados, levando a decisões enviesadas e injustas. Cabe aos advogados estar atentos a essa possibilidade e agir de maneira proativa para mitigar o impacto de vieses algorítmicos.
Recomendações Práticas para o Uso Ético da IA
Diante desses desafios, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) já começou a desenvolver diretrizes para o uso ético da IA na prática jurídica[1]. Abaixo estão algumas recomendações práticas para garantir que a IA seja usada de maneira ética e eficaz:
1. Revisão Humana e Verificação de Informações
Nenhuma peça processual gerada por IA deve ser submetida sem uma revisão rigorosa. O advogado é o responsável final pela precisão das informações apresentadas ao tribunal. Não há desculpa aceitável para o uso de citações fictícias ou argumentos infundados gerados por IA.
2. Conhecimento Técnico e Capacitação Contínua
Não basta saber usar a ferramenta; é essencial entender como ela funciona. Isso inclui compreender suas limitações, o funcionamento dos algoritmos e as potenciais fontes de erro. Advogados devem buscar educação continuada em IA e tecnologia jurídica para fazer um uso consciente e responsável dessas ferramentas.
3. Políticas Internas e Cibersegurança
Escritórios de advocacia devem implementar políticas internas claras sobre o uso de IA, incluindo diretrizes de cibersegurança e treinamentos obrigatórios para toda a equipe. Essas políticas não apenas protegem os dados dos clientes, mas também ajudam a manter a conformidade com as normas éticas e a LGPD.
4. Transparência e Consentimento Informado
Todo cliente deve ser informado sobre o uso de IA em seu caso, com explicações claras sobre como a tecnologia será utilizada e quais são seus potenciais benefícios e riscos. O consentimento informado é um pilar da transparência e da confiança na relação advogado-cliente.
5. Monitoramento de Vieses e Justiça Algorítmica
Advogados devem monitorar continuamente o desempenho das ferramentas de IA para identificar e corrigir possíveis vieses. Isso inclui a realização de auditorias periódicas e a adoção de algoritmos projetados para minimizar discriminações e enviesamentos.
Ética e Responsabilidade na Era da Inteligência Artificial
A Inteligência Artificial tem o potencial de transformar a advocacia, trazendo eficiência e precisão sem precedentes. No entanto, seu uso inadequado ou irresponsável pode comprometer a qualidade dos serviços jurídicos e a integridade da profissão. A responsabilidade final sempre recairá sobre o advogado, que deve exercer supervisão humana rigorosa e julgamento profissional em todas as etapas do processo jurídico. A IA é uma ferramenta poderosa, mas deve ser usada com cautela, transparência e um compromisso inabalável com a ética e a justiça. A advocacia sempre será uma profissão baseada na confiança, e o uso ético da IA é essencial para preservar essa confiança. Se adotada com prudência e responsabilidade, a IA pode não apenas transformar a prática jurídica, mas também promover aumentar a eficiência e o acesso à justiça.
Referências
[1] Conselho Federal da OAB. RECOMENDAÇÃO N. 001/2024 -Apresenta diretrizes para orientar o uso de Inteligência Artificial generativa na Prática Jurídica.
Sobre o autor:
Sócio fundador do Barral Parente Pinheiro Advogados. Atuou como árbitro da Organização Mundial do Comércio, do Mercosul e do Sistema de Resolução de Controvérsias do Reino Unido. Foi Secretário de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC, 2007-2011). Doutor em Direito Internacional (USP).