Desafios regulatórios para a universalização do saneamento básico no Brasil

Metas de universalização do Novo Marco do Saneamento visam garantir 99% de cobertura para abastecimento de água e 90% para esgoto até 2033

A atualização do Marco Legal do Saneamento Básico (Lei 14.026/2020) estabeleceu a obrigação de universalização da prestação de serviços, em 99% no caso do abastecimento de água e 90% no caso dos serviços de esgotamento sanitário, até 2033, nos termos do art. 11-B, da nova redação da Lei 11.445/2007.

A urgência na universalização da prestação decorre dos dados atuais: enfrentar o histórico problema da deficiência no acesso aos serviços de esgotamento sanitário, os quais alcançam apenas 56% do esgoto gerado, segundo última atualização de 2023 do Sistema Nacional de Informações do Saneamento.

Contudo, essa obrigação traz consigo inúmeros desafios a todos os stakeholders envolvidos. Assim, merecem destaque como desafios regulatórios relevantes: (i) adequação dos contratos de prestação de serviços existentes para inclusão das metas de universalização; (ii) prestação regionalizada das novas concessões; (iii) apoio da Agência Nacional de Águas e Saneamento – ANA e da Secretaria Nacional de Saneamento Básico aos Municípios e Entidades Reguladoras Infracionais.

Adequação dos contratos de prestação de serviços existentes para inclusão das metas de universalização

Uma das determinações do Novo Marco do Saneamento Básico diz respeito à necessária adequação dos contratos de prestação de serviços às novas metas de universalização. Como forma de cumprir com suas atribuições legislativas e incentivar o cumprimento do Novo Marco pelos atores envolvidos na prestação de serviços, a ANA, publicou a Norma de Referência nº 08/2024, que entrou em vigor em 20 de maio deste ano e contém diretrizes para universalização desses serviços e sua comprovação.

O titular dos serviços públicos deve prever as metas progressivas de expansão nos Planos Municipais e Regionais de Saneamento Básico com vistas ao atingimento dos valores estabelecidos para a universalização de abastecimento de água e esgotamento sanitário até, no máximo, 31 de dezembro de 2033.

Além disso, as entidades reguladoras infranacionais devem adotar sistema de monitoramento da cobertura e do atendimento de abastecimento de água potável e de esgotamento sanitário que permita comprovar seu acompanhamento anual e a sua demonstração perante a ANA.

A entidade reguladora infranacional escolhida e o titular são responsáveis pela verificação do cumprimento das condições e metas dos contratos e planos de saneamento básico por parte dos prestadores de serviços, na forma das disposições legais, regulamentares e contratuais.

Os contratos de prestação de serviços abastecimento de água ou esgotamento sanitário celebrados anteriormente à publicação do plano de saneamento básico atualizado, sem compatibilização com as metas de universalização, devem incorporá-las por aditamento, em comum acordo entre as partes, com avaliação da entidade reguladora infranacional, preservado o equilíbrio econômico-financeiro.

O prazo para o início da verificação do cumprimento da adequação dos contratos se inicia em maio de 2025. Essa obrigação evidencia um dos grandes desafios estabelecidos pelo Novo Marco, já que o aditamento contratual implica, necessariamente, em repactuação, nas condições estabelecidas pela legislação específica.

Prestação regionalizada das novas concessões

A atualização do Marco Legal do Saneamento incentivou a prestação regionalizada dos serviços. A estruturação da prestação regionalizada tornou-se, inclusive, requisito para a alocação de recursos públicos federais e financiamentos por recursos da União.

Com a prestação regionalizada, isto é, em mais de um Município, é possível a obtenção de ganhos de escala, a viabilização técnica e financeira de projetos, e com isso, a necessária universalização dos serviços, abarcando Municípios que a princípio seriam pouco atrativos financeiramente.

Porém a problemática da prestação regionalizada é muito mais complexa do que aparenta, e não pode ser resumida à mera criação de leis estaduais de estruturação da prestação regionalizada.

Ou seja, para além da mera lei, é preciso criar e operacionalizar uma entidade de governança federativa e que desta sejam gerados efetivos contratos de concessão para a prestação regionalizada dos serviços de saneamento básico.

Assim, muitas concessões demandam um planejamento minucioso, considerando a necessidade de aglutinação de áreas superavitárias de prestação dos serviços com áreas deficitárias, de forma a criar os modelos conhecidos popularmente como “filé com osso”, para garantir uma prestação de serviços adequada, eficiente, com tarifas módicas, com acesso universal e suficiente, e, ao mesmo tempo que as áreas tradicionalmente deficitárias sejam bem atendidas pela delegação.

O que, nesse sentido, pode ser um facilitador ou complicador na estruturação das concessões, considerando o modelo de regionalização adotado em cada estado da Federação.

Os exemplos das concessões dos Estados do Paraná, Piauí, Sergipe, Alagoas, Ceará e Rio de Janeiro, apesar de calcados em modelos de prestação regionalizada distintos, evidenciam a possibilidade de utilizar diferentes arranjos a fim de garantir um alcance territorial dos serviços.

Nesse sentido, o desafio que se coloca é o da estruturação de arranjos suficientes, seja para fins de prestação direta ou por meio de delegação, dadas as particularidades de cada Município ou conjunto de Municípios, e a imprescindível articulação político-institucional para permitir o ganho de escala eficiente.

Apoio aos Municípios e Entidades Reguladoras Infracionais

Os Municípios são titulares da prestação de serviços, e a eles cabe garantir a sua universalização. Por outro lado, o orçamento municipal é o mais limitado em comparação aos demais entes federativos, principalmente considerando que 70% dos Municípios brasileiros contam com até 20.000 habitantes, o que limita seu potencial arrecadatório[1].

Ainda assim, cumpre aos Municípios uma postura ativa na execução de metas, bem como uma postura de cumprimento de outras tantas obrigações, que, ainda que não lhes exija uma ação específica, demanda investimentos para o seu efetivo cumprimento.

Pela Lei n° 11.445, incumbe à entidade reguladora garantir o cumprimento das condições e metas estabelecidas nos contratos de prestação de serviços e nos planos municipais ou de prestação regionalizada de saneamento básico.

A ANA aprovou a Norma de Referência nº 4/2024 que estabelece práticas de governança aplicadas às entidades reguladoras infranacionais (ERIs) que atuam no setor de saneamento básico. O atendimento às práticas de governança deverá ser comprovado até janeiro de 2026, quando será possível obter um diagnóstico integral do status das ERI’s existentes no território nacional.

A ANA poderá instituir programa de incentivo à melhoria da governança, por meio de fornecimento de apoio técnico e institucional às ERIs. Para a Agenda Regulatória 2025-2026, a ANA incluiu a criação de norma para determinar requisitos de elegibilidade de ERIs e estágios de desenvolvimento para o programa Pró-Saneamento, em razão de quadros técnicos insuficientes, dificuldades orçamentárias, dentre outras.

Atualmente foram publicadas 9 normas de referência pela ANA relativas aos serviços que compõem o serviço de saneamento básico e a agenda regulatória da Agência tem se empenhado na publicação de outras tantas.

É importante considerar, porém, que, ainda que a ANA tenha conseguido imprimir um ritmo de publicações considerável, todas essas normas deverão ser aplicadas por operadores, titulares de serviços e Entidades Reguladoras Infranacionais (ERI), de forma que o setor como um todo deverá se adaptar às novas premissas e regras envolvidas, o que demandará uma acomodação institucional desses stakeholders.

E, para além disso, a ANA deverá se concentrar também na fiscalização do cumprimento das normas de referência pelas ERI, assim como apoiá-las na fiscalização da execução contratual pelos prestadores. Tem-se, portanto, um desafio relevante a ser assumido pela ANA, mas com repercussão em todos os demais agentes envolvidos na prestação de serviços.

É fundamental, portanto, que a União e ANA, dentro de suas capacidades, mobilizem recursos humanos, tecnológicos e financeiros para apoiar Municípios e ERI’s nas suas dificuldades para a concretização da universalização do saneamento básico.

Conclusão

O Novo Marco do Saneamento Básico trouxe um conjunto de obrigações a todos os atores envolvidos no setor, inclusive a atores anteriormente não envolvidos. Por essa razão, será necessária a adaptação de todas essas partes envolvidas, em busca do cumprimento das disposições positivas. Isso implica, necessariamente, em um período de adaptação, assim como monitoramentos periódicos de seu cumprimento e transparência dos dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento.

A questão que se coloca é que o Novo Marco trouxe, com essas obrigações, prazo exíguos de cumprimento, como o prazo de universalização dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. E, dessa forma, o período de adaptação institucional deverá se dar em concomitância ao cumprimento dessas obrigações, considerando que o enforcement adotado pela legislação é o de vedação de acesso a recursos federais, nos termos do art. 50, da nova redação da Lei 11.445/2007.

Colocados esses desafios, e devidamente ressaltados como apenas parte dos existentes, é possível afirmar que o caminho para a universalização dos serviços de saneamento básico passa por um esforço conjunto das partes envolvidas, um necessário amadurecimento institucional e regulatório em busca de soluções integradas e eficientes que possam, de fato, colaborar para o aprimoramento da política pública como um todo. Como o saneamento básico envolve serviços complexos, é possível que a solução de um ou outro aspecto acabe esbarrando em limitações de áreas adjacentes, razão pela qual o esforço conjunto jamais deve ser desprezado.


[1]BRASIL. IBGE. Censo Demográfico 2022: População e domicílios – Primeiros resultados. Disponível em: https://static.poder360.com.br/2023/06/Primeiros-Resultados-de-Populacao-e-Domicilios-Apresentacao.pdf

Sobre o autor:

Doutora em Direito do Estado pela USP. Mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP e bacharel pela mesma Universidade. Membra do Instituto Brasileiro de Direito Regulatório (IBDRE); do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo Sancionador (Idasan); do Infrawomen Brasil; e do Grupo de Pesquisa Economia, Regulação, Financiamento e História do Saneamento Básico, da Universidade de São Paulo. Advogada.

Presidente da Comissão de Saneamento Básico do IBDRE. Vice-presidente da Comissão de Direito à Cidade da OAB/PR. Membra do Infrawomen Brasil. Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR. Advogada e Professora.

Membro da Comissão de Saneamento Básico do IBDRE. Membro consultor da Comissão Especial de Saneamento, do Conselho Federal da OAB. Doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia pelo PPGD UNIBRASIL. Advogado.

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