Em dezembro de 2024 foi sancionada a Lei 15.073 visando combater o turismo sexual e proteger crianças e adolescentes que são vítimas desta pratica. Podemos afirmar que se trata de uma norma de proteção às mulheres pois a maioria que sofre a exploração sexual é do gênero feminino. Isso é fruto da cultura machista que tem como uma de suas expressões a objetificação e sexualização dos corpos femininos, até mesmo de crianças e adolescentes.
O dever de proteção, prevenção e combate a qualquer tipo violência contra crianças e adolescentes não é obrigação apenas do Estado. Nessa perspectiva a nova Lei reforça a participação das pessoas jurídicas, que atuam na atividade do turismo, impondo o dever de proteção e aplicando sanções ao seu descumprimento. Portanto, a atuação não se enquadra na seara da faculdade e das boas práticas empresariais mais, sim, como uma obrigação.
Um destaque da Lei 15.073/2024 é que ela traz sanções de natureza administrativa chamando outros ramos, que não apenas do Direito Penal, para atuar na proteção de crianças e adolescente vítimas do turismo sexual. Essa perspectiva é positiva pois amplia, para além do Estado, a responsabilidade sobre um tema tão sensível passando a atingir outros setores da sociedade, no caso o empresariado. Essa reflexão é importante pois vivemos em uma sociedade que exalta o punitivismo. Em grande parte dos problemas sociais o Direito Penal é o primeiro a ser chamado para atuar. Enquanto os livros trazem que esse ramo é subsidiário e deveria ser o últimoa intervir, a dinâmica social e legislativa brasileira tratam a seara criminal como primeira opção.
Romper essa lógica é fundamental, inclusive para compartilhar responsabilidade de atuação em temas centrais e superar a ideia de que apenas o Estado deve agir. No Direito Penal, além das suas mazelas de seletividade e estigmatização, a centralidade de ação é do Estado que investiga, processa, pune e executa. A nova traz obrigações aos prestadores de serviços turísticos com a finalidade de combater a exploração sexual de crianças e adolescentes, ou seja, coloca-os como sujeitos ativos na intervenção do problema aplicando penalidades no caso de descumprimento.
Assim, a Lei 15.073/2024 alterou a 11.771/2008, a qual dispõe sobre a Política Nacional de Turismo, definindo em seu art. 2º que: “considera-se turismo o fenômeno social, cultural e econômico que envolve as atividades realizadas por pessoas físicas durante viagens e estadas em lugares diferentes do seu entorno habitual, por um período inferior a 1 (um) ano, com finalidade de lazer, negócios, comparecimento a eventos, entre outros”.
Uma das alterações foi no art. 34, inciso VII, em que os prestadores de serviços turísticos passaram a ter o dever de “inibir, no exercício de suas atividades, práticas que favoreçam o turismo sexual, entendido como a exploração sexual associada, diretamente ou não, à prestação de serviços turísticos”.
Dentre outras penalidades a nova redação do art. 43-C, dada pela Lei 15.073/2024, também traz um dever de agir ao prestador de serviços turísticos punido quem “Deixar de colaborar com as iniciativas governamentais de combate ao turismo sexual no âmbito da prestação de serviços turísticos”. As sanções de natureza administrativa previstas são: “multa, cancelamento da classificação, interdição de local, de atividade, de instalação, de estabelecimento empresarial, de empreendimento ou de equipamento e cancelamento do cadastro”.
A alteração dos dois artigos traz o dever de agir aos prestadores de serviços turísticos que, com isso, passam a atuar em conjunto com o Estado no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes. A implementação desse comando é um importante passo para a efetivação do princípio da proteção integral da criança e do adolescente, previsto no art. 227[1] da Constituição Federal.
Dalmo de Abreu Dallari (apud CURY, 2002) escreveu que: “Como as crianças e os adolescentes são mais dependentes e mais vulneráveis a todas as formas de violência, é justo que toda a sociedade seja legalmente responsável por eles”. Assim com a reforma legislativa dos dois artigos acima referidos, a atuação da empresa sai do âmbito da abstração, para se constituir em dever legal sendo eles: o de “inibir, no exercício de suas atividades, práticas que favoreçam o turismo sexual, entendido como a exploração sexual associada, diretamente ou não, à prestação de serviços turísticos” e “de colaborar com as iniciativas governamentais”.
Essas obrigações são voltados para a pessoa jurídica na medida em que a Lei 11.771/2008, no art. 21, considera “prestadores de serviços turísticos as sociedades empresárias, as sociedades simples, os empresários individuais, os microempreendedores individuais, as sociedades limitadas unipessoais, os serviços sociais autônomos e as associações privadas de turismo que prestem serviços turísticos remunerados e que exerçam as seguintes atividades econômicas relacionadas à cadeia produtiva do turismo, abrangendo meios de hospedagem; agências de turismo; transportadoras turísticas; organizadoras de eventos; parques temáticos, parques aquáticos, parques de diversões, atrações e empreendimentos turísticos dotados de equipamentos de entretenimento e lazer e acampamentos turísticos”.
A Lei 15.073 é o segundo ato normativo que, no ano 2024, alterou a Política Nacional de Turismo para tratar da exploração sexual de crianças e adolescentes. A Lei 14.978, sancionada em 18 de setembro de 2024, trouxe importantes alterações na Lei 11.771/2008 abrindo caminhos para a legislação que ora analisamos.
Houve modificação no inciso X, do art. 5º, para incluir como objetivo da Política Nacional de Turismo: o apoio a prevenção e o enfrentamento da exploração sexual de crianças e adolescentes e de outros abusos que afetem a dignidade humana no turismo brasileiro. A novidade foi especificar a exploração sexual de crianças e adolescentes, já que na redação anterior constava apenas a expressão genérica “abusos de natureza sexual” sem indicar, portanto, o público a ser tutelado. Aparentemente a leitura pode sugerir uma restrição ao alcance da norma. Contudo, a mudança além de incluir o importante recorte, dialogando com o Estatuto da Criança e Adolescente, traz em seguida a expressão: “outros abusos” ao lado da referência ao princípio da dignidade humana no turismo brasileiro o que amplia o alcance normativo[2].
Embora o princípio da dignidade humana seja preceito previsto na ordem constitucional é importante, na tutela dos direitos humanos, que ele seja irradiado para os microssistemas legislativos. Essa migração é relevante tanto para reafirmar o seu alcance como também para incorporar as especificidades da sua aplicação aos diversos contextos.
Outrossim, merece destaque a alteração do inciso XVI, do art. 6, que trouxe como objetivo do Plano Nacional de Turismo a previsão de “ações relacionadas ao enfrentamento do abuso e da exploração sexual de crianças e adolescentes na atividade turística”.
A definição de prestadores de serviços turísticos, supracitada, também é fruto de alteração implementada pela Lei 14.978/2024. No mais ela elencou como dever destes prestadores “manter, em local visível, mensagem referente à vedação da exploração sexual e do tráfico de crianças e adolescentes” (Art.34, inciso V). Este comando já era previsto desde 2007 na Lei 11.577, porém, não englobava todos os prestadores de serviço do setor. Assim, a inclusão legal ampliou o alcance da norma e os obrigados no campo do turismo a cumpri-la.
Na questão da exploração sexual de crianças e adolescentes, a Lei 14.978/2024 abriu importantes caminhos para a 15.073/2024, objeto do presente artigo. Os dispositivos punitivos foram inseridos pela segunda que também incrementou o dever de agir dos prestadores de serviços turísticos, no combate à exploração sexual de crianças e adolescentes, a partir das modificações legais introduzidas antes.
Além das normas constantes no Plano Nacional de Turismo, com as alterações já enumeradas, a exploração sexual é prevista como crime no Estatuto da Criança e do Adolescente. Seu art. 244 pune com pena de 4 a dez anos e multa, além da perda de bens e valores utilizados na prática criminosa, quem submeter criança ou adolescente à prostituição ou à exploração sexual. Ainda podem ser punidos criminalmente o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifique a submissão de criança ou adolescente às práticas referidas. Sendo cabível também a sanção administrativa, como efeito obrigatório da condenação criminal, de cassação da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento.
A norma do direito penal traz o seguinte comando implícito: “não cometa a conduta para não ser apenado”. A nova lei traz um diálogo e complemento relevante à norma penal, pois impõe, não só um não fazer, mas também uma conduta positiva: o dever do setor turístico de inibir no exercício de suas atividades práticas que favoreçam o turismo sexual. A imposição de ação é um dos meios de reforçar que o crime não ocorra e proteger o bem jurídico. Além disso o dever de ação exorta o compromisso social, no caso do setor de turismo, deixando claro que não é apenas o Estado que deve a agir em favor da erradicação da exploração da dignidade sexual de crianças e adolescentes.
No Brasil há uma cultura do direito penal ser o primeiro, quando não o único, vetor de atuação de condutas danosas. E quando a criminalização não causa impacto significativo para intervir no problema social, em lugar de questionar as limitações deste campo e os seus efeitos nefastos, reforça-se o mesmo com nova lei mais rigorosa. Daí o destaque ao caminho trilhado pela Lei 15.073/2024 que trouxe penalidades administrativas em lugar do expansionismo penal. É preciso que a sociedade pense em outras alternativas de intervenção para além do direito criminal. Violências que atingem majoritariamente meninas e mulheres tem como lastro a cultura patriarcal e a vulnerabilidade social. Por isso o direito penal não é suficiente sendo necessária a atuação de outros ramos do direito, sobretudo, de políticas públicas e ampla participação dos diversos atores sociais.
Referências:
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2020.
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
CURY, Munir. Estatuto da criança e do adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. 5. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.
DIMENSTEIN, G. O cidadão de papel: a infância e adolescência e os Direitos Humanos no Brasil. 20.ed. São Paulo: Ática, 2002.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo e dignidade da pessoa humana. Revista de Direito Administrativo e Constitucional, ano 13, n. 52, p. 13-33, abr./jun. 2013. SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado e violência. 2ª edição, São Paulo: Expressão popular: Fundação Perseu Abramo, 2004.
[1] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
[2] Seque a redação revogada e a atual:
“Art. 5- A Política Nacional de Turismo tem por objetivos:
X – prevenir e combater as atividades turísticas relacionadas aos abusos de natureza sexual e outras que afetem a dignidade humana, respeitadas as competências dos diversos órgãos governamentais envolvidos; (REVOGADA).
X – apoiar a prevenção e o enfrentamento da exploração sexual de crianças e adolescentes e de outros abusos que afetem a dignidade humana no turismo brasileiro, respeitadas as competências dos diversos órgãos governamentais envolvidos; (Redação dada pela Lei nº 14.978, de 2024) ”.
Sobre o autor:
Advogada, doutora pela PUC/SP e professora da UESB