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O erro na atividade administrativa: uma reflexão necessária

Erro grosseiro na gestão pública exige análise contextual. Descubra como obstáculos reais e dificuldades enfrentadas pelos agentes influenciam decisões administrativas e evitam injustiças

A partir do dia a dia de nossas atividades profissionais, atuando na consultoria e assessoria jurídica de instituições públicas federais, não temos dificuldades em perceber as angústias vivenciadas pelos gestores públicos e pelas gestoras públicas relacionadas com o fenômeno da “administração pública do medo” e, em virtude disso, ao processo de responsabilização desses agentes públicos.

Nesse cenário, a Lei n. 13.655/2018[1] amplifica a segurança jurídica no processo de tomada de decisão administrativa. Dispõe, também, a respeito da figura do erro grosseiro, que passa a ser considerado como fonte da responsabilidade pessoal do agente público.[2]

Segundo Guimarães Rosa, “Sertão é isto o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo.” Eis aí o ponto de tensionamento sobre o qual precisamos voltar nossa atenção: a celeuma jurisprudencial e doutrinária sobre a compreensão e análise das decisões administrativas e seu eventual enquadramento como erro grosseiro.

Nesse ambiente, é possível afirmar que esta incerteza produz insegurança jurídica que, por sua vez, resulta naquilo que a doutrina denomina de Direito Administrativo do Medo que, nas palavras de Guimarães Rosa, pode ser assim traduzido: “tem diversas invenções de medo, eu sei, o senhor sabe. Pior de todas é essa: que tonteia primeiro, depois esvazia. Medo que já principia com um grande cansaço. (…) Medo do que pode haver sempre e ainda não há”.

Medo que, por sua vez, implica paralisia decisória (quem tem CPF tem medo) e ineficiência administrativa (receio de promover inovações nas contratações públicas), diante do receio de responsabilização pelos órgãos que atuam na esfera controladora.

Dito isto, é preciso compreender o conceito de erro grosseiro a partir da Lei n. 13.655/2018 e do Decreto n. 9.830/2019. Na verdade, a simples leitura do §1º, do artigo 12[3] do decreto citado não parece ser muito esclarecedora. Isto porque se trata de conceito normativo cuja essência é caracterizada pela utilização de termos abertos e valorativos: “manifesto”, “evidente” e “inescusável”, “elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”.

A essa leitura precisamos conjugar a interpretação do §2º, do artigo 12 do mesmo decreto, segundo o qual Não será configurado dolo ou erro grosseiro do agente público se não restar comprovada, nos autos do processo de responsabilização, situação ou circunstância fática capaz de caracterizar o dolo ou o erro grosseiro”.

Segundo Dom Quixote de la Mancha, “Um homem que não acredita em seus sonhos é um homem que já morreu”. Com esse ideal valorativo pensamos que, no dispositivo citado, encontramos a chave para adequada compreensão do erro grosseiro.

O §2º, do artigo 12, do Decreto n. 9.830/2019 seria o nosso ponto de chegada para análise e compreensão da decisão administrativa a partir de seus elementos estruturantes, que estão previstos na LINDB reformada pela Lei n. 13.655/2018.

Nesse cenário normativo, é preciso destacar que as alterações normativas promovidas pela lei de segurança jurídica são aplicáveis nas esferas administrativa, controladora e judicial e que na interpretação das normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas, inclusive em face das possíveis alternativas.

Um exemplo nos ajudará na compreensão daquilo que estamos a propor. Imagine que você faz parte da equipe de fiscalização de seu município, estado ou entidade federal. Sua equipe é formada por três pessoas. Por alguma razão, a servidora “A” fiscaliza 3 contratos administrativos, o servidor “B” fiscaliza 10 contratos administrativos e outro fiscaliza 35 contratos administrativos.

Agora imagine que os três cometeram o mesmo erro: relataram uma medição de 1.075 m², porém, de fato, a contratada executou 537,5 m². A pergunta é: seria possível enquadrar as três decisões administrativas como erro grosseiro? Pensamos que não. Isto porque o contexto em que estão inseridos é diverso. As condições de calor, temperatura e pressão também.

Ou seja, os obstáculos e as dificuldades reais de gestão na realização de suas atividades precisam ser compreendidos a partir do contexto fático em que cada agente público está inserido para, a partir daí, analisar a decisão do agente para compreender a sua adequação e razoabilidade.

Assim, parece-me que o quantitativo de contratos sob a responsabilidade de cada um deles precisa ser ponderado, questões a respeito de eventual capacitação e qualificação, análise sobre experiência ou inexperiência dos agentes na execução desses tipos de atividade, o tipo de contrato administrativo objeto da fiscalização: obras, serviços de tecnologia da inovação, aquisições, serviços de engenharia, serviços com dedicação exclusiva de mão de obra?, entre outras que podem variar de acordo com cada caso concreto.

É certo que não estamos utilizando as dificuldades reais de gestão como “carta curinga” para justificar de forma inadequada ou irrazoável decisões ou escolhas administrativas. Não se trata disso. No entanto, é preciso ter clareza quanto ao fato de que a realidade se impõe e que, no final do dia, é preciso ter em vista que, nas palavras da escritora norte-americana Ayn Rand, “você pode ignorar a realidade, mas não pode ignorar as consequências de ignorar a realidade”.

Por fim, a questão é: o Direito tem como fonte a norma ou as necessidades reais da sociedade? Segundo Guimarães Rosa “O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.”. Portanto, a compreensão do erro grosseiro (ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia) não acontece no abstrato, no campo da teorização, pois, como dito, seu conceito é normativo, assim, carece de ser compreendido a partir do encontro entre a norma e a circunstância fática na qual a decisão administrativa foi tomada, considerando as dificuldades reais de gestão e as alternativas possíveis (elementos estruturantes da decisão administrativa).


Referências

[1] Parte da doutrina a denomina de “lei de segurança jurídica”.

[2] Art. 28.  O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

[3] Art. 12.  O agente público somente poderá ser responsabilizado por suas decisões ou opiniões técnicas se agir ou se omitir com dolo, direto ou eventual, ou cometer erro grosseiro, no desempenho de suas funções.

Sobre o autor:

Procurador Federal - AGU. Doutorando em Direito na UNB. Mestre em Direito pela UFRN. Professor Voluntário de Direito Administrativo da UNB. Autor do livro “Entre as alternativas possíveis e o erro grosseiro nas contratações públicas”.

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