A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por unanimidade, que cabe à Justiça da Noruega decidir sobre a expedição de passaportes para duas crianças com dupla nacionalidade — norueguesa e brasileira — que residem naquele país. A decisão foi proferida em resposta a um recurso especial interposto pelo Ministério Público Federal (MPF), que pretendia obter autorização judicial para a emissão dos passaportes no Brasil, após o pai norueguês das crianças ter negado o consentimento.
Contexto do caso e a aplicação da Convenção de Haia
O caso teve início quando uma mulher brasileira, mãe das crianças, entrou com ação no Brasil para obter autorização judicial para a emissão de passaportes de seus filhos menores, após o pai norueguês recusar-se a renová-los. A família reside na Noruega desde 2015 e, após a separação, o pai temeu que as crianças pudessem viajar ao Brasil com a mãe e não retornassem.
O Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) manteve a decisão de primeira instância, que havia extinto o processo sem julgamento de mérito, argumentando que a Convenção de Haia de 1980 — da qual Brasil e Noruega são signatários — prioriza as decisões judiciais do país de residência das crianças em questões de guarda e visitação. Contra essa decisão, o MPF recorreu ao STJ, alegando que o Brasil também teria competência para suprir a autorização para emissão de passaporte brasileiro, conforme o parágrafo único do artigo 27 do Decreto 5.978/2006.
Análise da relatoria e a competência concorrente
O ministro Afrânio Vilela, relator do recurso no STJ, destacou que o artigo mencionado pelo MPF permite que, em caso de divergência entre os pais sobre a emissão de passaporte para menores de 18 anos, tanto a Justiça brasileira quanto a estrangeira podem resolver a questão. Contudo, ele ponderou que, no caso específico, a Justiça norueguesa já havia decidido sobre a guarda das crianças, que residem com a mãe em Rogaland, e concedido ao pai o direito de visitas.
Para o ministro Vilela, permitir que a Justiça brasileira suprimisse a autorização paternal para emissão dos passaportes poderia facilitar a viagem das crianças ao Brasil sem a autorização do pai ou da autoridade judicial norueguesa, o que violaria os princípios da Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, de 1980.
Princípio do juízo imediato e defesa do pai
O relator enfatizou que o pedido de suprimento da autorização paterna para a expedição dos passaportes deve ser tratado pela Justiça norueguesa devido às especificidades do caso, que envolvem questões de guarda. Ele destacou que essa abordagem garante ao pai o direito de participar do processo e exercer plenamente sua defesa, promovendo uma decisão mais próxima das partes envolvidas.
O ministro também reforçou o princípio do juízo imediato, previsto no artigo 147, I e II, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que prioriza a proximidade do julgador com as partes, proporcionando uma prestação jurisdicional mais célere e efetiva, focada no melhor interesse das crianças.
Decisão final e aplicação das normas internacionais
Com base nesses argumentos, o STJ negou provimento ao recurso do MPF, confirmando que a Justiça da Noruega é a jurisdição competente para decidir sobre a expedição dos passaportes das crianças, reforçando o respeito aos princípios internacionais de proteção dos direitos de guarda e visitação.
Questão jurídica envolvida
A decisão envolve a interpretação da competência jurisdicional em casos de guarda de menores e emissão de documentos, à luz da Convenção de Haia de 1980 e do Decreto 5.978/2006. O STJ reafirmou a prioridade da Justiça do país de residência dos menores em decisões que envolvem sua guarda e deslocamento, respeitando os princípios internacionais de proteção contra o sequestro internacional de crianças.
Legislação de referência
- Convenção de Haia de 1980: “Visa proteger a criança dos efeitos prejudiciais resultantes de mudança de domicílio ou de retenção ilícitas e garantir a efetiva aplicação dos direitos de guarda e de visita estabelecidos pelo país de domicílio do menor.”
- Art. 27, parágrafo único, do Decreto 5.978/2006: “Nas hipóteses de divergência entre os pais quanto à autorização para a emissão de passaporte para menores de dezoito anos, a questão poderá ser resolvida tanto pela Justiça brasileira quanto pela estrangeira.”
- Art. 147, I e II, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): “Compete à autoridade judiciária brasileira, em casos de urgência ou quando a medida tiver que ser adotada no território nacional, decidir sobre a proteção de crianças e adolescentes em situações internacionais.”
Processo relacionado: REsp 1992735